O CRSCM E O OBSERVATÓRIO DO TRAUMA - Parte I

 

O Reconhecimento da Perturbação Psicológica Crónica resultante da exposição a Fatores Traumáticos de Stress durante a Vida Militar em ex-combatentes portugueses na Guerra Colonial

 

Durante a Guerra Colonial (GC), partiram de Portugal entre 1961 a 1974, cerca de um milhão de homens com o objetivo de lutar nas colónias africanas, em operações militares que duravam, em geral, aproximadamente 24 meses (Dias, Sales, Cardoso & Kleber, 2014, p. 1). A guerra provocou, entre os militares portugueses, cerca de 10 000 mil mortos e 40 000 mil feridos (Maia, McInTyre, Pereira & Fernandes, 2006, p. 12). Mas, as vítimas diretas das repercussões psicológicas de experiências traumáticas sofridas no contexto desta guerra, estão por contabilizar.

Embora em 2003, no estudo epidemiológico sobre PTSD na população adulta portuguesa, de Albuquerque, Soares, Jesus & Alves, se estimasse que 9,9% dos veteranos da Guerra Colonial (cerca de 100 000 mil homens) teriam desenvolvido Stress Pós-Traumático, a verdade é que estes foram, durante e após a guerra, vítimas negadas, negligenciadas. Porque as suas feridas não eram visíveis a olho nu. Porque as manifestações clínicas eram frequentemente não imediatas, eclodindo meses, anos, ou mesmo décadas após o acontecimento desencadeante. Porque destoavam do discurso oficial do “verdadeiro militar impermeável a fraquezas”. E porque as vítimas psicológicas dos contextos de guerra, com as suas especificidades patoplásticas, são particularmente complexas e, também por este motivo em geral, assumidas tardiamente.

Já quando da I Grande Guerra, a evidência do sofrimento dos soldados portugueses desencadeou em Portugal publicações de análise clínica e científica, nomeadamente “A Neurologia na Guerra”, de Egas Moniz (1917). Este livro, ao divulgar os quadros clínicos desencadeados na frente de guerra (patologias causadas por explosivos, sem traumatismo externo, que produziam um quadro de alterações nervosas ou emocionais), é considerado “o primeiro grande trabalho publicado em Portugal sobre este tema e revela-se uma importante contribuição para a pré-história do que hoje se designa como stress pós-traumático” (Morgado Pereira, 2016, p. 281).

Mas é na sequência da Guerra Colonial, em África e, pela primeira vez, no anterior meio século, que os portugueses se depararam com as marcas psicológicas das experiências de quem viveu a guerra. Constataram chocados mas silenciosos, enormes mudanças psicológicas, arrastado sofrimento emocional ou irreversíveis alterações da personalidade em homens que foram à guerra.

Como costuma acontecer nas guerras, o impacto na vida de militares e suas famílias mantém-se ainda hoje presente, quase 60 anos depois. Apesar disso, durante largos anos, um véu de silêncio manteve encobertos os temas relativos à guerra e, de forma ainda mais opaca, a questão do sofrimento psicológico dos ex-combatentes. Como explica Calafate-Ribeiro (2004, p. 26), “a ocultação da guerra, feita após o 25 de Abril, não era um artifício de vontade autoritária, mas antes uma incapacidade de avaliação para lidar com tão dolorosa e explosiva herança, deixando o ex-combatente num ambíguo e desconfortável lugar entre a vítima [...] e a imagem de um antigo poder que se queria esquecer”.

O caminho do reconhecimento foi sendo desbravado de forma gradual, quer pelos alertas constantes dos ex-combatentes e das suas associações, quer pelos serviços de psiquiatria dos hospitais militares e das estruturas de saúde civis, confrontados com a realidade das dores emocionais de ex-combatentes e das suas famílias (Sales, 2003). Em 1985, o serviço de Psiquiatria Comportamental do Hospital Júlio de Matos-Lisboa criou a 1ª consulta de Stress de Guerra, em Portugal (Albuquerque, 2012). Na década de 90, o Hospital Magalhães de Lemos, no Porto, e o Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar de Coimbra iniciaram grupos terapêuticos de Psicodrama direcionados a ex-combatentes.

Também a sociedade civil, lentamente, começou a levantar o tema. Desde os anos 60, a literatura abriu espaço para se ir “encarando de frente os nossos fantasmas”, através de poderosas narrativas “em que se conjuga o dissídio, a denúncia, o memorialismo e o confessionalismo, a culpa e a catarse, a força testemunhal e autobiográfica” (Cruzeiro, 2004, p. 33). Começou, assim, a surgir uma literatura para colocar a tónica da experiência da guerra colonial na primeira pessoa.

  • “[...] escrita pela geração que teve o azar histórico e vivencial de fechar o ciclo imperial com uma guerra e que dela regressou com o terrível sentimento de “se ter tramado em vão, de se ter gasto sem sentido,” a geração do logro político, da revolta a medo, do amor a medo, da deserção ou da guerra. As suas obras vão narrar de uma forma muito biográfica, apesar dos arranjos ficcionais ou das elaborações narrativas, a história da anti-epopeia pessoal e colectiva que foi a guerra colonial, como percurso de interrogação constante dos seus narradores e personagens face às realidades vividas ao longo do percurso africano” (Ribeiro, 1998, p. 139).

Em 1967, Manuel Alegre publicou O Canto e as Armas, obra pioneira na denúncia da ditadura salazarista e da rejeição da Guerra Colonial. Doze anos depois, em 1979, António Lobo Antunes estreou-se com Memória de Elefante, logo seguido, no mesmo ano, de Os Cus de Judas (romance baseado nos aerogramas que o escritor escreveu incessantemente à esposa durante o serviço militar como Alferes-médico, em Angola, de 1971 a 1973) (Lima, 2018, p.  5; 22).

Os anos 80 trouxeram várias obras de relevo: Nó Cego (1982), de Carlos Vaz Ferraz, Autópsia de Um Mar de Ruínas (1984), de João de Melo, A Costa dos Murmúrios (1988), de Lídia Jorge e Jornada de África (1989), de Manuel Alegre.

  • Nestas obras está presente uma geografia africana, que foi a geografia da guerra, do medo e da angústia, da emoção e da interrogação constante. Aqui está uma África oprimida nas sanzalas, humilhada, mas em luta, está o mato, as picadas, as minas, o tempo que não passa, os abusos de poder, os homens e os seus medos, mas também a sua coragem, a sua sede, o seu cansaço, a sua raiva e as muitas mortes, os pedaços de Portugal de corpo e alma deixados nas picadas de África” (Ribeiro, 1998, p. 140).

Na comunicação social, o espaço dedicado à Guerra Colonial abriu portas a pontuais relatos, como os dossiers: “Os despojos Humanos de África” (Jornal Público, 1993), “Afonso de Albuquerque: Estes homens continuam em Guerra” (Notícias Magazine, 1996), “Guerra Colonial: “Stress” Pós-traumático I / II / III”, de João Figueira para o Diário de Notícias (1999), a título de exemplo, e onde era dada a conhecer a situação precária dos veteranos portugueses.

Embora as primeiras publicações científicas sobre o impacto psicológico desta guerra nos militares portugueses (Fernandes, 1975; Jesuíno, 1970; Pereira, 1976) tenham surgido ainda nos anos 70, só duas décadas mais tarde, na Revista de Psicologia Militar, em 1992, foi publicado o primeiro artigo científico específico sobre o stress de guerra, dirigindo a sua atenção aos ex-combatentes (Albuquerque, Fernandes, Saraiva, & Lopes, 1992). No estudo, foi apresentada a avaliação de 40 ex-combatentes da Guerra Colonial, confirmando a existência de PTSD e revelando o curso da doença. Ainda entre os trabalhos publicados na década de 1990, destaca-se o de Anunciação (1997), que explora as relações conjugais de ex-combatentes da Guerra Colonial diagnosticados com stress pós-traumático.
Verificou-se, no entanto, um aumento considerável nos estudos e publicações nessa área, na sequência do reconhecimento da perturbação psicológica crónica resultante da exposição a fatores traumáticos de stress durante a vida militar, com a sua formalização através da Lei nº 46/99, em 1999. Um estudo de 2003 com 145 ex-combatentes, que procurou elaborar o perfil-tipo do candidato a reparação médico-legal por possível PTSD, foi publicado na Revista Portuguesa de Saúde Militar, ano 4 nº1 (Sales, Pereira, & Dias, 2004). Dois anos depois, foram acrescentadas às avaliações efetuadas nesta análise, os resultados de 335 ex-militares.

Em 2003, Afonso de Albuquerque, Catarina Soares, Paula Martins de Jesus e Catarina Alves publicaram, na Acta Médica Portuguesa, o primeiro estudo epidemiológico sobre a PTSD em Portugal, onde, numa seleção de 2 606 participantes, identificaram uma taxa de prevalência de PTSD de 7,87% e concluíram que “75% da população portuguesa está exposta a pelo menos uma situação traumática”. Entre os participantes, 11,6% dos homens estiveram em situação de guerra ou combate, e desses 9,9% desenvolveram PTSD.

Em 2007, surgiu o projeto “Os Filhos da Guerra Colonial: pós-memória e representações” do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, com uma equipa multidisciplinar (constituída por investigadores das áreas dos Estudos Literários e Culturais, Sociologia, Psicologia e Psiquiatria) que procurava, entre outras coisas, analisar a relação entre memória e trauma numa ética de representação da Guerra Colonial e avaliar da possível transmissão intergeracional do trauma psicológico, identificando fatores de vulnerabilidade em ex-militares com PSPT e nos seus descendentes.

Constata-se, pois, como foi moroso o acesso ao reconhecimento formal das perturbações psicológicas de conteúdo traumático e decorrentes de vivências militares ocorridas na Guerra Colonial. Destacam-se, como marcos relevantes, a criação da Associação de Deficientes das Forças Armadas (ADFA), logo em 1974. Mas, só em 1999, surgiu novo e decisivo impulso, através da saída do Decreto-Lei nº 46/99 que “reconhece a perturbação psicológica crónica resultante da exposição a fatores traumáticos de stress durante a vida militar como patologia justificativa de acesso ao estatuto de Deficiente das Forças Armadas (DFA)”, encorajando a discussão acerca do reconhecimento da psicopatologia e do direito à reparação. Seguiu-se, em 2000, a publicação do Decreto-Lei nº 50/2000, que estabeleceu a Rede Nacional de Apoio aos militares e ex-militares portugueses portadores de tal perturbação, agregando nessa rede as entidades oficiais e as ONGs que têm promovido atenção e suporte àqueles que são afetados pelo stress em contexto militar.

Por fim, em 2018 é criado o Centro de Recursos de Stress em Contexto Militar (CRSCM), consagrado no estatuto do Antigo Combatente em 20 de Agosto 2020, pelo Decreto-Lei nº 46/2020. O CRSCM “foi criado assente numa perspetiva multidisciplinar abrangendo as áreas médica, psicológica, social e político-jurídico, com o objetivo de recolher, organizar, produzir e divulgar conhecimento disperso sobre a temática do stress em contexto militar” (CRSCM, 2020). De modo a alcançar os objetivos elencados, diferentes universidades e centros de estudos foram chamados a participar do projeto, com equipas responsáveis por diferentes áreas do conhecimento, que articularam entre si a elaboração de um plano de trabalho comum, dividido consoante as diversas áreas de atuação.
O Observatório do Trauma/CES integra o CRSCM desde a sua criação, em 2018. Coube-lhe trabalhar a área médica do projeto. A equipa, atualmente formada pela coordenadora, a psiquiatra Luísa Sales e as investigadoras Joana P. Becker e Camila Borges, tem-se dedicado a conhecer e propor práticas de prevenção, tratamento e reabilitação de quadros patológicos decorrentes do impacto de fatores de stress durante a vida militar. 

 

Junho de 2021   

Luísa Sales

Joana P. Becker

Camila Borges                                                                                         

 

Este texto foi originalmente publicado na InfoTRAUMA #8, em junho de 2021


Bibliografia:

Albuquerque, A., Fernandes, A., Saraiva, E., & Lopes, F. (1992). Distúrbio Pós-Traumático do Stress em Ex-combatentes da Guerra Colonial. Revista de Psicologia Miitar, 399–407.

Albuquerque, A., Soares, C., Jesus, P., & Alves, C. (2003). Perturbação pós-traumática do stress (PPST): Avaliação da taxa de ocorrência na população adulta portuguesa. Acta Médica, 6, 309-320.

Anunciação, C. (1997). Ajustamento marital em ex-combatentes da Guerra Colonial com e sem perturbação pós-stress traumático. Análise Psicológica, 15(4), 595-604.

Cruzeiro, M. (2004). As mulheres e a Guerra Colonial: Um silêncio demasiado ruidoso. Revista Crítica de Ciências Sociais, 68, 31-41.
Dias, A., Sales, L., Mota Cardoso, R., & Kleber, R. (2014). Childhood maltreatment in adult offspring of Portuguese war veterans with and without PTSD. Eur J Psychotraumat, 5(1), 1-10.

Fernandes, B. (1975). A guerra e as suas condições humanas vistas por um psiquiatra: equivalentes verbais da agressividade e mutação construtiva da destrutibilidade. Separata de O Médico, 76 (1256), 327-330.

Jesuíno, J. (1970). Problemas de acção psicológica. Separata dos "Anais do Clube Naval".

Lima, A. (2018). A ficção de Lobo Antunes e a Guerra Colonial. Consultado em 26 fev. 2021. Disponível em pdf aqui.

Maia, A., McIntyre, T., Pereira, G. & Fernandes, E. (2006). Por baixo das pústulas da guerra: Reflexões sobre um estudo com ex-combatentes da guerra colonial. In M. Gama (Org.) A guerra colonial (pp. 11-28). Braga: Centros de Estudos Lusíadas.


Morgado Pereira, J. (2016). A Psiquiatria em Portugal: protagonistas e história conceptual (1884 -1924) (Tese de Doutoramento). Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Pereira, O. (1976). Problemas de psicossociologia militar após a guerra: um estudo das implicações das «campanhas do Ultramar» na saúde mental dos combatentes e em problemas actuais / Orlindo M. G. Gouveia Pereira. - [S.l. : s.n., 1977] (Lisboa : Oficinas Gráficas da Editorial Minerva. - 22[1] p. ; 23 cm. - Separata dos "Anais do Clube Militar Naval", n.ºs 7-9 (julho-setembro de 1976).

Ribeiro, M. C. (1998). Percursos africanos: a Guerra Colonial na literatura pós-25 de Abril. Portuguese Literary & Cultural Studies, 1, 125-152.

Ribeiro, M. C. (2004). África no Feminino: As mulheres portuguesas e a Guerra Colonial. Revista Crítica de Ciências Sociais, 68, 7-29.
Sales, L., Pereira, F. G., & Dias, A. (2004). Distúrbio de Stress Pós-traumático e Peritagem Médico-legal. Revista Portuguesa de Saúde Militar, 1, 9-14.


N - Este texto assenta em dados presentes no Relatório Final de Atividades do OT no CRSCM (Março/2021), relatório elaborado pelas mesmas autoras do presente texto.
 

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