Abusos Sexuais na Igreja Católica Portuguesa - José Manuel Pureza

  

OS DESAFIOS PARA A IGREJA CATÓLICA PORTUGUESA

 

Temo que o impacto do relatório sobre a violência sexual a que foram submetidos milhares de jovens e crianças por membros da hierarquia católica venha a ser outra vítima do sistema de poder que alimenta aquelas práticas ignóbeis.  A pior coisa que pode acontecer é que o relatório seja lido apenas como o retrato de expressões individuais de uma sexualidade deformada sem mais. Claro que o mínimo que a Igreja – enquanto instituição em que os abusos ganharam a dimensão de uma cultura instalada – tem de fazer é reconhecer-se como a instituição a coberto da qual os autores desses crimes se sentiram protegidos para os praticar reiteradamente. E, em coerência, tem de dotar as vítimas de todos os meios que lhes permitam sarar as feridas profundas que foram infligidas às suas vidas. Mas o impacto do relatório tem de ir muito além desse mínimo, tem ser muito mais completo, sob pena de não servir para combater a violência sórdida de que os seus relatos dão conta.

Essa violência tem as expressões físicas e psicológicas que são conhecidas. Mas, a dar força e sentido a essas violências, há uma violência mais funda que é a de um sistema de poder que se autolegitimou com base na arrogância da pretensão de uma representação da divindade, operando uma distinção hierárquica entre povo crente e casta de ministros do divino. Para além da reparação das vítimas, o primeiro grande desafio que o relatório lança à Igreja é, por isso, o de ser instrumento de combate contra a violência estrutural inerente ao que Francisco tem corajosamente designado por pecado do clericalismo.

E depois há um não dito no relatório: a sociedade portuguesa conviveu com as práticas de violência sexual no âmbito da Igreja e tolerou-as entre sussurros e desvio do olhar. Se a Igreja é o alvo direto das denúncias deste relatório, os silêncios da sociedade portuguesa e dos seus poderes instituídos são o seu alvo indireto. Enquanto retrato de uma sociedade que vive bem com (ou cultiva mesmo) o abuso dos mais fracos, o relatório tem de ser usado como uma ferramenta de denúncia da grande separação entre o discurso oficial e a prática concreta em matéria de respeito pela dignidade dos mais vulneráveis.

 

José Manuel Pureza

Professor Universitário na FEUC, investigador do CES e membro da Comunidade de Acolhimento Cristão João XXIII

Ir para o topo