Um ano depois da tragédia, é importante refletirmos e, acima de tudo, assumirmos as lições resultantes dos incêndios de 15 de outubro.
É inegável o impacto destes acontecimentos no bem-estar físico, na qualidade de vida e na saúde global de todos os afetados. De igual modo, é também evidente a necessidade de admitirmos atitudes preventivas, que, de alguma forma, limitem as consequências traumáticas de acontecimentos futuros.
O Centro de Trauma do CES/UC, seguindo a sua estratégia de promover o conhecimento sobre a prevenção do trauma psicológico resultante de crises, desastres e catástrofes, tem tomado em especial atenção os técnicos que intervêm nestes contextos, e que, por isso, são sujeitos a uma dupla vulnerabilidade: como vítimas primárias, pela exposição aos perigos imputáveis ao cenário de crise; e como vítimas secundárias, pela sobrecarga inerente ao material traumático dos que socorrem.
Uma experiência traumática resulta da exposição a uma situação limite, que ameaça a vida, as crenças, os valores, vivida pelo próprio ou tão somente testemunhada de forma direta ou indireta. As reações, embora dependentes das caraterísticas e do contexto em que o acontecimento ocorre, são específicas e individualizadas, diferentes de pessoa para pessoa, consoante as suas vulnerabilidades e capacidade de resiliência.
Simplificando a psicofisiologia de um evento potencialmente traumático, diremos que o organismo ameaçado tende a reativar, de forma não controlada, sensações, emoções e comportamentos de anteriores experiências marcantes. Este processo ocorre de forma involuntária e provoca dor.
Mais do que o agente traumático, o que aumenta a probabilidade do adoecer é a imprevisibilidade do acontecimento, a perceção de ameaça, de descontrolo, bem como a interpretação subjetiva que cada um faz do ocorrido. O que traumatiza são as memórias fragmentadas, desintegradas de uma narrativa lógica e coerente. O que ressalta são os sintomas de evitamento dos estímulos, as alterações de comportamentos hiperativados e as reexperienciações abruptas e incontroladas da situação vivida.
Quando ocorre uma situação de crise, desastre ou catástrofe, tal como os incêndios de 2017, deparamo-nos com uma multiplicidade de potenciais vítimas, algumas delas inicialmente “invisíveis”. Se, por um lado, se destacam as populações diretamente afetadas, por outro, existem vítimas secundárias, quer sejam familiares diretos, intervenientes ocasionais, espetadores ausentes do local, profissionais que divulgam a informação ou os técnicos que prestam socorro.
Um incêndio é um evento crítico que pode suscitar um medo mobilizador, que ativa os instintos de sobrevivência. Depois do momento de ameaça, vem a reação individual, diferenciada em cada pessoa. Se, compreensivelmente, uns reagem com pânico e de forma desadaptada, outros recorrem aos próprios recursos internos para retomar o controlo de si mesmo. Felizmente, a maioria das pessoas consegue superar a experiência traumática, integrando-a no seu percurso de vida, sem sequelas relevantes. Porém, não podemos esquecer que muitas das vítimas vêm a desenvolver patologia de sofrimento psíquico, que se manifesta reversível, a curto ou médio prazo; enquanto que cerca de 5% da população mundial alguma vez afetada, mantém um sofrimento traumático de caraterísticas crónicas, com gravosas consequências pessoais, familiares e sociais, que se refletem, inclusive, nas economias das comunidades. Acresce que estes números aumentam de forma exponencial nas chamadas profissões de risco, como são, em exemplo, as dos técnicos que prestam socorro.
Para facilitar a capacidade de superação desejada, é importante que haja uma rápida e eficaz intervenção psicossocial na crise, que ajude no readquirir da saúde global das vítimas, ao nível físico, social e psicológico. Esse trabalho inicial, que tem regras e tempos próprios, não tem que ser exclusivo de psicólogos, mas sim integrado – aglutinando igualmente assistentes sociais, técnicos de apoio à vítima ou todos os que forem considerados como mais-valias. Implica, no entanto, formação prévia específica, com ênfase na intervenção junto das vítimas e na proteção do próprio técnico.
Como tal, é inegável a importância cívica do disseminar da formação em primeiros socorros psicológicos. A sua utilização generalizada em contextos de crise, reduz o stress, a ansiedade, apoia a capacidade de superação das vítimas, limita a leitura errada de que o sofrimento dos sobreviventes é patologia obrigatória.
Destaca-se ainda que a prevenção de stress traumático (e patologias relacionadas) é assunto de primordial atenção, não apenas nos estudos sobre vítimas primárias, mas naqueles com foco em profissionais que atuam em cenários de crise. A partir de pesquisas sobre acidentes de trabalho, abuso de álcool, depressão e PTSD, muitos investigadores apontam como obrigatória uma acrescida atenção e formação na gestão de adversidades, bem como um necessário suporte psicoterapêutico após a intervenção no terreno, a fim de proteger os profissionais de efeitos psicopatológicos de experiências traumáticas.
Como acima referimos, a grande maioria das vítimas consegue superar o sofrimento psicológico decorrente destas ocorrências, sem ficar com sequelas psíquicas irreversíveis. Para isso, contribuem as características intrínsecas da pessoa, o suporte da comunidade, a eficaz intervenção psicossocial na crise. No entanto, alguns adoecem e, tal como qualquer outra doença, as patologias decorrentes do trauma psicológico possuem especificidades clínicas próprias, entre as quais as suas tardias eclosões. A sua abordagem deve, aí sim, ser atribuída a especialistas de Saúde Mental, com obrigatória formação diferenciada em Psicotraumatologia (psiquiatras, psicólogos).
A evocação dos acontecimentos que nos atingem, como sociedade, só tem sentido se lhes extraímos as devidas elações e, em consequência, atuarmos efetivamente, seja modificando as estratégias de prevenção, seja agindo sobre os previsíveis desencadeantes, seja melhorando as anteriores formas de resposta no pós-crise.
Esperamos que a lembrança da tragédia de 2017 nos mantenha atentos, disponíveis para pugnar por eficazes planos de intervenção, por redes credíveis de resposta terapêutica no trauma psicológico, por competentes planos de formação e proteção nos técnicos que intervém no terreno. O Centro de Trauma do CES/UC está disponível para estes combates.
Luísa Sales | Coimbra, 5 de novembro de 2018
Coordenadora do Centro de Trauma do CES/UC