Quando a 17 de Março de 2011, decidimos abraçar um Projecto Inovador em Saúde Mental, mais conhecido pela sigla PIMS, e instalar uma Equipa de Saúde Mental Comunitária no Centro de Saúde de Figueiró dos Vinhos, nada fazia prever que em Junho de 2017, teríamos de enfrentar a catástrofe dos Incêndios de Pedrógão Grande.
Passados três anos, o trabalho em psiquiatria e saúde mental nestas comunidades/concelhos, colocou-nos diversos desafios que tentamos resolver dentro dos princípios que norteiam o nosso trabalho - intervenção em psiquiatria e saúde mental comunitária.
Se estávamos preparados para lidar com a urgência e emergência das situações no imediato e pós Crise?
Não, tivemos que nos preparar para os desafios constantes e permanentes dum trabalho em crise comunitária e adaptar a nossa organização de prestação de cuidados quer para a doença mental grave quer para todo o adoecer consequente às perdas e lutos que se instalaram, pois, grosso modo toda a comunidade estava e está ainda perturbada com tais acontecimentos.
Ter que gerir a nossa intervenção que tem que se pautar pela reserva e a descrição, dum trabalho em que para além das intervenções farmacológicas tem muito mais de intervenções psicoterapêuticas em crise, foi prova de esforço e de resiliência, perante não só a adversidade de cuidar de pessoas numa dor enorme, devastadora cujo período de perplexidade, nalguns ainda persiste, mas também o da própria sobrevivência emocional e psicológica dos elementos da equipa confrontados por vezes com os comentários pouco esclarecidos de alguns.
Durante estes três anos, fomos reorganizando os cuidados respeitando as diferentes formas de lidar com os lutos, atentos com os colegas dos Cuidados de Saúde Primários às situações de agudização da doença/ saúde, aproximando mais a prestação dos cuidados pelos centros de saúde mais próximos e ampliando as intervenções nos domicílios pela possibilidade de poderem melhor e recatadamente expressar mágoas, dores, sofrimentos, angustias memórias…
Ter que usar uma estrada onde tudo aconteceu, diariamente, onde o calcinado, o cinzento e o preto, o cheiro a terra queimada tão intenso que impregnou os nossos sentidos, as nossas vidas, para todo o sempre; esta imagem que a eternizou, apela às nossas forças para não desistir…
O que é preciso?
Permanecer, apesar duma tarefa dura, física e emocionalmente, pois agora, fazemos parte dum espaço territorial que interpela permanentemente as nossas consciências, profissional, social, comunitária…
O que aprendemos?
Tudo o que as faculdades não ensinam.
A clínica e os cuidados não se podem impor, não se pode invadir a singularidade individual, e interromper a riqueza das narrativas. A solicitude, e o altruísmo. O que é ser solidário, como se deve capacitar perspectivas, para não morrer de dor…
A exigência e a resiliência, a fé nos outros, o desprendimento, as interrogações sobre recomeços.
É no silencio destas montanhas, tão mares encapelados e por vezes tão mansos, que sentimos ter de continuar pelo que foi feito, pelo que não foi feito, e pelo muito que gostaríamos que já tivesse sido feito noutras áreas complementares à saúde.
Este é o lugar em que o simbólico e o concreto mais se identifica para a sobrevida, para olhar o outro e nos podermos olhar…
O 17 está aí e como ouvimos dizer a vida está aí mas nada será igual…
Ana Maria Araújo
Psiquiatra