DIZER O INDIZÍVEL
Dizer o indizível. É isso que encontramos nas narrativas publicadas no relatório produzido pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica. Os relatos das vítimas demonstram de que maneira o passado ainda se mantém presente na vida de quem teve a coragem de contar ao público sobre as suas experiências mais privadas. Encontrar as palavras que possam aproximar o outro deste passado tão doloroso é uma tarefa complexa e desafiadora, mas que tem todo o potencial de trazer benefícios significativos e duradouros. Encontramos muitas vezes esse esforço de encontrar as palavras para relatar experiências traumáticas na literatura. A autobiografia, por exemplo, é um espaço de representação em que o trauma infantil é muitas vezes trabalhado, já que fornece o enquadramento temporal e a progressão narrativa necessária para abordar questões fulcrais que reverberam desde a idade mais jovem até a vida adulta. Na vertente ficcional, o romance de formação é outro género propício para tal relato, uma vez que nele se busca cartografar o desenvolvimento da personagem em seu período formativo, prestando a particular atenção aos processos de construção identitária, às influências sociais e familiares e aos possíveis eventos traumáticos e suas consequências. Um exemplo dessa dinâmica pode ser encontrado em Sei Porque Canta o Pássaro na Gaiola de Maya Angelou, uma autobiografia publicada originalmente em 1969 e traduzida para português em 2017 pela Antígona. Nela, a autora relata a violação que sofreu aos sete anos e as consequências dessa violência no seu desenvolvimento, como por exemplo a depressão profunda que viveu e a perda da fala por mais de cinco anos. Este mutismo é relacionado por Angelou ao sentimento de culpa que viveu, resultante do trauma em questão e reforçado depois do assassinato do perpetrador alguns dias mais tarde pelas mãos de alguns membros de sua família. Por muito tempo Angelou acreditou que o contar teria sido responsável por esta violência e por isso era incapaz de proferir qualquer outra palavra, por medo de causar ainda mais dor. Foi somente mais tarde que Angelou foi capaz de perceber que quem havia sido a real vítima era ela.
Partindo do pressuposto de que a linguagem é uma forma de agência, o contar torna-se um ato de transformação. Apesar dos limites da linguagem, que é incapaz de narrar por completo os eventos em todas as suas vertentes e perceções, a tentativa de ordenação do passado, do que se sentiu e do que se percebeu sobre um determinado momento de nossas vidas, torna-se já potencialmente positiva no próprio entendimento da nossa realidade enquanto sujeitos e daquilo que foi a nossa infância e juventude. Através da partilha da representação de nossas narrativas pessoais, é possível melhor compreender o desenvolvimento do ego de forma retrospetiva, ao ligarmos os pontos que nos trazem até o momento presente. O ato de contar transforma nosso próprio entendimento do passado.
Fica também evidente o papel social deste contar, uma vez que estreita o espaço entre a vítima e a sociedade, não somente no campo pessoal, mas também no coletivo. O isolamento causado pela experiência traumática, assim como a vulnerabilidade, o medo e a vergonha que dela podem resultar, enfraquecem quando se dá a partilha da experiência com outras pessoas, quando se verbaliza esse passado e quando ele é alvo de escuta ativa. Sobretudo porque é possível perceber que não se está sozinho ou sozinha, que existem pessoas preocupadas em ouvir/ler o que se quer enunciar e preocupadas também em alterar as circunstâncias que tornaram possível que essa violência ocorresse. A partilha permite, desejavelmente, o emergir de uma ampla frente de condenação aos sistemas e sujeitos responsáveis pela dor que foi imposta a corpos e subjetividades vulneráveis. No caso do volume de relatos identificado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, ele sinaliza o caráter estrutural desse tipo de violência, desvelando os mecanismos de manutenção do silêncio e permitindo uma apreciação mais fiel sobre esta realidade. Espera-se também que dê origem à criação de medidas que busquem combater estas práticas. A socialização desse passado cria, de diferentes maneiras, ferramentas para a superação do trauma quando consideramos que, ao relatar estes episódios, as pessoas que foram vítimas de abuso estão a retirar o controlo narrativo das mãos dos perpetradores, tornando-se sujeitos ativos da sua própria história. E esse pode, efetivamente, ser um caminho para lidar com passados violentos e dolorosos.
Gonçalo Cholant
Professor Auxiliar Convidado da FLUC, Investigador do Observatório do Trauma/CES