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Participação cívica
Giovanni Allegretti

Entre as atividades paralisadas pelo surto de COVID-19 contam-se muitos processos de participação cívica. Portugal, na última década, entrou no mapa mundial da participação institucionalizada, sendo um dos poucos países a contar centenas de orçamentos participativos locais, mas também experiências promovidas pelo governo central. Por outro lado, existe ainda uma Rede de Autarquias Participativas (RAP) que incentiva a aprendizagem mútua de processos inovadores centrados no diálogo social. Enquanto estas experiências permaneceram em standby, emergiram formas de ativismo espontâneo que conquistaram as redes sociais digitais, as varandas e as ruas. A suspensão resultante da pandemia levanta quatro questões interligadas: 1) o risco de a vaga de processos de participação institucionalizados não conseguir retomar a sua dinâmica e de a perda de um dos seus ciclos anuais levar ao fim de muitas dessas experiências; 2) a escolha dos melhores instrumentos para as relançar e atualizar o diálogo entre instituições e comunidades; 3) a renovação das metodologias de participação e dos próprios temas em discussão; 4) as experiências que possam servir de guia nesta “retoma atualizada” dos processos participativos.

Com o fim do estado de emergência terminou a fase de “obediência” e torna-se necessário construir ambientes de responsabilização coletiva para valorizar o capital social comum na reconstrução de um “novo normal”. Para se evitar a paralisia das formas de participação “por convite”, é necessário reiniciar rapidamente um diálogo entre cidadãos e administrações, refundando a participação em duas vertentes: a metodológica e a substantiva.

Metodologicamente, a solução está nas formas híbridas que juntem pequenos grupos de discussão e um maior uso das tecnologias que permitam conectar e harmonizar os espaços de microdeliberação. É preciso recuperar o contacto físico que a COVID-19 suspendeu, por medo das grandes aglomerações. As “frias” tecnologias e a encenação digital já invadiram demasiado as nossas vidas para não gerarem rejeição. Um equilibrado compromisso de corpos em diálogo com as devidas distâncias de segurança pode trazer soluções duradouras. É também necessário ultrapassar os processos fragmentados por níveis administrativos, criando percursos participativos interescalas, onde o pensamento produzido pelos cidadãos possa ser canalizado para soluções imediatas em diferentes níveis das políticas públicas.

A pandemia tornou-nos mais ambiciosos em relação à substância dos debates: queremos ajudar a reestruturar o estado de bem-estar destruído por décadas de políticas neoliberais, reduzir as novas desigualdades e exclusões e repensar conceitos e padrões de qualidade de vida (tais como o espaço público e a habitação como lugar multifuncional de convivência entre diferentes exigências). A participação cívica no “novo normal” precisa de investimentos públicos para funcionar, de ser moldada em torno de formas de ativismo lúdico e solidário – que se multiplicaram durante o lockdown – e de ser atrativa e divertida, para responder a uma grande diversidade de necessidades que a política e a tecnocracia têm dificuldade até em imaginar.

Há exemplos a seguir. Na Galiza, jovens arquitetos ajudam famílias na remodelação de casas, em França, autarcas negociaram com o Presidente da República a criação de painéis de cidadãos para acompanharem a reconstrução do dia a dia e, na Itália, vários municípios fazem co-design dos novos processos participativos com cidadãos. Sem esquecer que cidades como Seattle ou Prato já apostaram no diálogo cívico durante a pandemia, demostrando o quanto as soluções inovadoras podem trazer benefícios às comunidades.



Como citar:
Allegretti, Giovanni (2020), "Participação cívica", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 25.04.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30505. ISBN: 978-989-8847-24-9