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Distanciamentos ou aproximações sociais?
Carlos Fortuna

Por todo o lado no mundo, enquanto tarda a solução técnica/biomédica para a COVID-19, as pessoas foram convidadas a combater o novo coronavírus praticando o distanciamento social. Assim se alcançaria o planalto e se havia de “achatar a curva” da incidência viral, reduzindo o número de infeções e aliviando as emergências hospitalares. Ficar em casa, de onde só se sairia virtualmente, era a solução mais radical para concretizar a distância entre pessoas. As ruas esvaziaram-se e as cidades ficaram “desalmadas” com a súbita escassez de urbanidade. Quando as pessoas ousavam sair, com máscaras ou sem elas, faziam-no como autênticos zombies desconfiados, quase sempre sozinhas, entregues a desajeitadas cautelas na medição subjetiva dos dois metros de afastamento de outros. Para os mais incautos, as marcas da distância colocadas no chão asseguravam o cumprimento do preceituado.

Eu próprio, nas brevíssimas saídas do confinamento doméstico, vi-me convertido à condição de cidadão distanciado. Sabendo da psicótica e já longínqua experiência americana da preservação do personal space, assisti a réplicas locais de disputas desse tipo: quando alguém, por inadvertência, encurtava distâncias, logo encarava reparos intolerantes e olhares reprovadores que repunham o afastamento. Tão corriqueiro preceito funcionava como revisitação de disputa política – homo homini lupus – apaziguada apenas por uma poderosa autoridade que difundia mais e mais distanciamento social.

A sociologia – a narrativa das interações sociais – que sempre tratou, para os denunciar, os malefícios do isolamento individualista e que, ainda jovem, percebeu cedo a virtude política dos agrupamentos sociais, das multidões urbanas e dos movimentos coletivos, com a pandemia, surgia de repente convertida em dispositivo retórico a contrario. Em vez do gregarismo virtuoso, surge a apontar o distanciamento social como solução para o atual atentado à saúde pública.

Não perdeu ainda a validade o aforismo alemão que afiançava que “os ares da cidade libertam!” que tantas esperanças acalentou de progresso individual. Para conservarem a promessa de libertação emancipatória, os ares da cidade de hoje têm de estar para além de quaisquer soluções individualistas. O distanciamento social não é, nesse sentido, uma recomendação sociológica ajustada. O distanciamento é sempre individual(ista) e nada tem de partilha social.

Os ares que se desejam respirar na cidade são os da democraticidade urbana, feita de “reaproximações” proativas e consensos multiculturais. É na diversidade dos movimentos de trabalhadores, de feminismos e neofeminismos, de sincretismos religiosos, de movimentos antirracistas e neoétnicos, ativismos queer e outras manifestações sociais urbanas, que se distanciam e reaproximam ao mesmo tempo, que se encontra o antídoto para a devassa social trazida pela COVID-19. É na reaproximação concertada dos sujeitos que está a solução para a cidade ameaçada. O que a sociologia, promovida a conselheira, recomenda é a continuada proximidade social de indivíduos e grupos. O que a pandemia requer, sociologicamente falando, são, portanto, as reaproximações sociais que a distância física impede e o coronavírus bloqueia.



Como citar:
Fortuna, Carlos (2020), "Distanciamentos ou aproximações sociais?", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 23.04.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30326. ISBN: 978-989-8847-24-9