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Soberania alimentar*
Teresa Cunha

Apesar do que tem sido a grande narrativa propagada pela indústria alimentar capitalista, segundo o Programa Alimentar Mundial, em 2019, uma em cada nove pessoas no mundo sofre de fome e/ou má nutrição crónica. Os megaprojectos de agricultura intensiva, que só são viáveis com o desmatamento de florestas para ocupação com territórios agrícolas de monocultivo, o uso sistemático de venenos (agro-tóxicos) e a utilização indiscriminada da água, têm colocado em sério risco os modos de vida, o acesso a água potável e aos alimentos dos povos das florestas, das águas, dos campos e das periferias.

Além disso, o modo como se processam os alimentos tem provocado a privatização da biodiversidade e a emergência de várias doenças que estão intimamente relacionadas com os alimentos processados, como a diabetes, a hipertensão arterial ou ainda as doenças cardiovasculares. Neste sentido, é necessário distinguir entre soberania alimentar e a ideia tão liberal de segurança alimentar, que não questiona as condições em que os alimentos são produzidos nem reivindica uma alternativa estrutural ao sistema capitalista da sua produção, processamento e comercialização. A urgência de se chegar à soberania alimentar fica ainda mais clara com aquilo que Anil Agarwal e Sunita Narain designam de colonialismo ambiental, pois ajuda-nos a entender como a exploração e a extracção dos recursos chamados naturais, incluindo os alimentares se baseia numa economia política colonial.

A ideia de soberania alimentar contraria essa lógica de apropriação e exploração sem fim da Terra, e tem na sua base uma intensa vinculação ao território e implica o exercício de autodeterminação. Isto significa o poder de decidir, nos seus próprios termos, o que os povos desejam para a sua vida – no presente e no futuro –, como se desejam alimentar e como pretendem reproduzir os seus modos de vida nos seus mais diversos aspectos. Os movimentos pela soberania alimentar reivindicam muito mais do que o direito individual à alimentação, pois proclamam a necessária devolução do poder de decisão às comunidades e colectivos sobre o que se planta e o que é alimento no respeito pela terra, pelas águas, pelas identidades e cosmovisões que sabem que a Terra-Natureza não é, nem pode ser, uma simples mercadoria. Trata-se ainda de reconhecer que é a agricultura em pequena escala que alimenta a maioria das pessoas do mundo e que é capaz de enfrentar de forma adequada as crises alimentares de natureza antropogénica.

A soberania alimentar concretiza-se de diferentes formas das quais se destacam: formas cooperativas de produção alimentar com base nas necessidades das populações e seus territórios; valorização de circuitos curtos/de proximidade de produção, processamento e comercialização dos alimentos; protecção fiscal das actividades de produção e comercialização de alimentos sem venenos e de produção em pequena escala; uma reforma agrária que garanta o direito à terra para todas e todos.

 


* Por vontade da autora, este texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.



Como citar:
Cunha, Teresa (2020), "Soberania alimentar", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 24.04.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30190. ISBN: 978-989-8847-24-9