O reconhecimento do direito humano à água, em 2010, pelas Nações Unidas consagrou o direito de cada pessoa a ter acesso a uma quantidade de água suficiente, segura, aceitável, fisicamente acessível e a preços razoáveis para as suas necessidades básicas, incluindo higiene e alimentação. Nos países em que o acesso físico é praticamente garantido a 100%, como na maior parte dos países ditos desenvolvidos, onde se inclui Portugal, a questão central reside na garantia do acesso a água potável a preços razoáveis. A cobrança do serviço de água permite, em muitos países, como em Portugal, o corte de água por falta de pagamento. Existem vários instrumentos para precaver esta situação, desde subsídios, planos especiais de pagamento, até apoios da segurança social, taxas sociais, entre outros. No entanto, nenhum destes instrumentos é automático e, em situações de emergência, o sistema não tem flexibilidade suficiente para responder atempadamente a casos de falta de capacidade financeira para pagar a conta da água. No contexto atual de pandemia, vários municípios e entidades abastecedoras de água adotaram medidas para evitarem este cenário e vários países adotaram legislação excecional proibindo temporariamente o corte de água (como Portugal, Brasil e, nos Estados Unidos, estados como a Califórnia ou o Texas), uma vez que o combate à contração e propagação da COVID-19 reside estruturalmente no lavar de mãos com água e sabão. Mas, trata-se de uma solução temporária e excecional.
O abastecimento de água tem de voltar a ser assumido como uma responsabilidade pública: a água tem de ser mantida como um bem público, por motivos sociais e ambientais, e tem de ser fornecida como um bem público essencial. O abastecimento de água à população para consumo doméstico tem de ser assegurado de forma permanente, sem ser possível a sua interrupção por motivos de falta de pagamento ou por tempos burocrático-administrativos desadequados. Várias medidas permitem assegurar esta garantia de forma incondicional: proibição absoluta do corte de água por falta de pagamento (em vigor em vários países, como na Áustria ou em França); fornecimento gratuito de um determinado número de metros cúbicos de água com base no tamanho do agregado familiar (como no Equador); não cobrança pelo serviço de água (como na Irlanda do Norte). Em qualquer destes casos, o serviço de água seria assumidamente um serviço público financiado parcialmente, ou na sua totalidade, pelo orçamento de Estado, ou seja, pelos impostos nacionais. Esta constitui a única alternativa para se garantir o acesso incondicional a água para consumo doméstico e nem sequer é uma opção inovadora, uma vez que já assim foi no passado – antes da colocação de contadores e da disseminação generalizada da cobrança da água –, e também assim é hoje, embora em situação de exceção, nalguns pontos do planeta.
Como citar: Lopes, Paula Duarte (2020), "Acesso a água", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30467. ISBN: 978-989-8847-24-9