No contexto das universidades e dos centros de investigação pode-se falar de uma hegemonia contemporânea de um tipo de conhecimento científico convertível em valor de mercado, tendo como palavras-chave “aplicação”, “utilidade”, “relevância” e “impacto”. Trata-se da valorização de um conhecimento instrumentalizado pelo mercado. Existe uma tensão caracterizada por dois extremos, já identificados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico em 2008: o conhecimento por si próprio (conhecimento “puro” ou “aplicado” decidido por quem faz ou gere ciência, independentemente do seu valor de mercado) e o conhecimento por razões económicas (conhecimento “puro” ou “aplicado” dirigido a problemas específicos e necessidades da sociedade que o irá “consumir”). O problema reside, então, na valorização crescente do segundo e na progressiva exclusão do primeiro, particularmente evidente nas ciências sociais e humanas e nas artes, mas presente em todo o tipo de conhecimento científico. A produtividade académica encontra-se, deste modo, “esmagada” entre procedimentos burocráticos cada vez mais exigentes, monitorização cerrada da performance de académicos/as e uma enorme pressão para produzir conhecimento relevante e visivelmente convertível em valor de mercado.
O contexto da atual pandemia de COVID-19 pode tornar evidente que o conhecimento por si próprio – desenvolvido então a partir de razões que não são necessariamente relacionadas com o mercado nem com a necessidade de lucro –, responde efetivamente, ou pode responder, a necessidades sociais e humanas. E isto é particularmente importante num momento em que podemos antecipar cortes no financiamento do ensino superior e da investigação. No âmbito da pandemia, vimos a sociedade recorrer à comunidade científica (e aos seus vários saberes) para perceber melhor a situação pela qual estamos a passar. Estamos, portanto, perante uma oportunidade de enfatizar, por um lado, o enorme potencial que o conhecimento por si próprio constitui em tempos de crise e, por outro, os riscos que corremos ao colocar demasiado ênfase na produção de conhecimento por razões económicas, principalmente razões económicas previsíveis. Vemos, deste modo, que palavras-chave como “aplicação”, “utilidade”, “relevância” e “impacto” podem ser atribuídas ao conhecimento por si próprio e não necessariamente apenas ao conhecimento convertível em valor de mercado. E que o paradoxo europeu – caracterizado pela aparente incapacidade dos países da Europa em converter as suas numerosas publicações científicas em inovação, crescimento e empregos –, deixe de ser um ponto tão central na agenda da produção de conhecimento, como ainda o é. Porque se há algo que esta pandemia evidenciou é que o mercado, e o valor de mercado, não pode ser a solução para tudo.
Como citar: Sousa, Sofia Branco (2020), "Conhecimento, ciência e mercado", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 03.12.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30434. ISBN: 978-989-8847-24-9