A complexidade do mundo que nos rodeia exige uma linguagem que o torne inteligível. Ao concentrar uma série de traços, valores e comportamentos numa só imagem, a utilização de rótulos permite-nos classificar e simplificar essa vasta realidade social. As representações invocadas por rótulos incitam sentimentos positivos e negativos, construindo uma predisposição em relação aos seus sujeitos que, por sua vez, condiciona as nossas ações. Tanto ao nível das relações interpessoais, como internacionais, a produção de rótulos é um processo com uma forte carga emocional e claras implicações políticas e sociais.
Os rótulos não são neutros nem inócuos; são produzidos num contexto de relações de poder e podem servir para naturalizar e legitimar certas representações e atos, constituindo, e não apenas refletindo, a nossa realidade social. O entendimento dos problemas contemporâneos, como a COVID-19, requer, por isso, a análise das palavras enquanto elementos desses mesmos problemas.
A atribuição do rótulo de “vírus chinês” por Donald Trump, nos seus discursos políticos sobre a pandemia, é um exemplo desse exercício de poder – de seleção e de legitimação, assim como de omissão e marginalização. Localiza o que é global, responsabilizando unicamente a China pelo contágio, enquanto invoca estereótipos pejorativos sobre práticas culturais chinesas. Estigmatiza comunidades inteiras – tanto na China, como as suas comunidades imigrantes no Norte global – legitimando práticas discriminatórias e violentas. Ao descrever o vírus como um fenómeno externo, o inimigo passa a ser não o vírus em si, mas a sociedade de onde este originou, dificultando, assim, esforços locais e internacionais de cooperação para travar a pandemia.
Os rótulos não vão deixar de existir: fazem parte da nossa linguagem e da forma como entendemos e representamos o mundo. É, no entanto, essencial que reconheçamos o seu papel – e o nosso – na (re)produção de relações de poder.
A autoconsciencialização confronta-nos com o impacto das nossas próprias palavras e a nossa responsabilidade enquanto agentes de poder. Isto implica olhar criticamente não só para os pronunciamentos de Trump; mas para os que emitimos à mesa de jantar ou no café. Implica igualmente apoiar decisões institucionais como a da Organização Mundial da Saúde, em 2015, de deixar de nomear doenças a partir dos seus supostos locais de origem, como era prática anterior.
À autorreflexão junta-se o compromisso de desconstrução; isto é, de desmascarar os interesses que os rótulos servem e questionar as suas associações e efeitos. No caso da COVID-19, um esforço de desconstrução pode pautar-se por salientar o papel das multinacionais do Norte global na desflorestação e urbanização, que aumentam a probabilidade do contágio zoonótico; ou por revelar o propósito político da administração norte-americana em associar a China ao vírus, como estratégia de desresponsabilização face ao fracasso na proteção da sua população.
O desafio à (re)produção de rótulos legitimadores de hierarquias exige ainda o que David Spurr chama de “resistência de guerrilha”: a contestação interna de pressupostos explícitos e implícitos de superioridade civilizacional. Não escapamos, porém, ao nosso lugar de enunciação pelo simples facto de o entendermos criticamente. A resistência requer, acima de tudo, uma atitude de abertura a novas formas de conhecimento e de entendimento do Outro, que assuma a sociedade não só como um espaço de relações de poder, mas também como um espaço de possibilidade.
Como citar: Cravo, Teresa Almeida (2020), "Rótulos e suas implicações", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30396. ISBN: 978-989-8847-24-9