Muito se tem falado da epidemia do medo, da ansiedade e da depressão, paralela à epidemia de COVID-19. No entanto, esquecem-se as pessoas com problemas prévios, designadamente as que têm problemas de saúde mental. Concretamente, as pessoas que vivem com diagnóstico de doença mental não mereceram qualquer atenção. A invisibilidade desta população no espaço público e o seu esquecimento nas políticas de saúde de resposta à epidemia têm impactos gravosos na vida destas pessoas. Notícias surgiram sobre a diminuição de internamentos e de consultas no Serviço Nacional de Saúde, sobre necessidades de prescrição por atender, sobre o recuo da assistência comunitária e domiciliária, sobre a chegada aos serviços em condições de grande fragilidade. À retração da assistência pública, somaram-se as restrições no apoio prestado pelas associações de doentes e cuidadores/as. O encerramento das atividades associativas presenciais – consultas, formação, grupos de entreajuda, encontros – isolou ainda mais uma população carente de sociabilidade e dependente de rotinas quotidianas para garantir a sua estabilidade emocional. A digitalização de múltiplos aspetos da vida como resposta à epidemia apresenta especiais limitações quando aplicada a uma população que, pela natureza da sua vulnerabilidade, ou por incapacidade logística e financeira, não tem condições para mobilizar recursos digitais como forma de manter as suas relações sociais. No plano terapêutico, o isolamento acrescido destas pessoas tende ainda a intensificar a tendência já observada de resposta ao sofrimento psíquico pela via única dos psicofármacos. Aos problemas sentidos pelas pessoas com doença mental, somam-se os das suas famílias, isoladas e abandonadas no cuidado, esgotadas e sem recursos disponíveis.
As pessoas com diagnóstico de doença mental prévio deveriam ser uma prioridade nas políticas de saúde de resposta à atual crise sanitária. O agravamento expectável das suas condições de saúde, dada a sua suscetibilidade a perturbações de rotinas e a situações de stress, em comparação com a população em geral, merece maior atenção. O período pós-pandémico deve, assim, ser encarado como uma oportunidade para que as políticas de saúde mental cumpram os objetivos, há muito estabelecidos em planos programáticos, de abandono dos modelos hospitalocêntricos de assistência, em benefício de formas comunitárias de apoio e da diversificação das respostas terapêuticas. É necessário que as pessoas com problemas de saúde mental não sofram perdas abruptas nas suas vidas quotidianas e mantenham o acesso a recursos materiais, nomeadamente a condições de alojamento e meios de subsistência dignos, mas também a recursos relacionais e emocionais. As associações de utentes/doentes e de familiares e cuidadores/as devem ser apoiadas, de forma a poderem criar alternativas de interajuda em período de distanciamento físico. O cuidado de proximidade e em rede resiste mais eficazmente à crise e à rutura. Por fim, os/as profissionais da saúde mental e do serviço social devem ser apoiados/as em contextos de cuidado extra-hospitalar.
Como citar: Portugal, Sílvia; Marques, Tiago Pires (2020), "Doença mental", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30274. ISBN: 978-989-8847-24-9