Nenhum autor é tão preciso como Karl Polanyi na datação da origem do capitalismo moderno – 1834, a data em que o Parlamento do Reino Unido aprovou a Emenda à Lei dos Pobres. Para Polanyi este momento assinala a instituição do mercado de trabalho ‘livre’ de que o capitalismo na sua forma industrialista tanto carecia. Com efeito esse ato legislativo pôs termo ao antigo regime de mitigação da pobreza substituindo-o por um outro, de estrita condicionalidade, que sujeitava os requerentes de apoio a internamento em casas de trabalho intencionalmente degradadas e degradantes tanto quanto o necessário para os obrigar a procurar e aceitar ‘livremente’ trabalhar fora delas por um qualquer salário.
Sem ignorar as origens remotas do capitalismo no bojo das sociedades feudais, Polanyi põe em evidência, com a sua datação, a juventude do capitalismo no tempo longo da história e uma das suas principais características relativamente a outros modos de produção – a predominância do trabalho assalariado sobre todas os outros tipos de relação social na produção.
O capitalismo começou por ser reconhecido como problema pelos que mais diretamente sofreram a desapropriação da terra e dos instrumentos de trabalho e foram lançados à indústria nascente sem outra coisa de seu senão a capacidade de trabalho. À beira do colapso muitas vezes em consequência de crises cíclicas e revoluções, o capitalismo a tudo resistiria até à Grande Depressão iniciada em 1929 e nunca resolvida até ao final da Segunda Guerra Mundial. Na maioria dos países da Europa, depois da guerra, o capitalismo conheceu uma “idade de ouro” – que viria a revelar-se efémera –, de relativa estabilidade, crescimento em paralelo de lucros e salários, níveis elevados de emprego e de coabitação com a democracia política.
Imerso em nova crise global a partir do início da década de 1970, da qual haveria de sair no final da década de 1980 como sistema sem alternativa à escala global, o modo capitalista de organização da sociedade volta nos nossos dias a constituir-se como problema aos olhos de uma ampla maioria social com escassa expressão política em torno de três insustentabilidades: social (pelo agravamento das desigualdades no interior dos países e o empobrecimento persistente das classes populares), ambiental (pelo crescente conflito entre os imperativos de acumulação e requisitos da vida no planeta) e política (pela cada vez mais clara dificuldade de convívio com a liberdade e a democracia).
A alternativa ao capitalismo foi imaginada ou desejada pelos mais politizados dos que primeiro o sofreram como problema na forma de uma sociedade que produzisse para si e não para uma classe ou casta privilegiada. A um tal desejo quase todos chamaram socialismo. Nas suas declinações revolucionárias e reformistas o desejo de socialismo assumiu formas e matizes muito diversos. Para quase todos seria uma sociedade de produtores associados. Mas sempre houve quem não fosse tão longe. Para Polanyi, com quem abrimos este texto, o socialismo mais não era do que democracia – a subordinação consciente do mercado à política democrática. Nessas duas formas – como associação de produtores livres ou como capitalismo domesticado – ainda hoje encontramos, com esse ou outro nome, o desejo de socialismo.
Como citar: Caldas, José Castro (2020), "Capitalismo", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30264. ISBN: 978-989-8847-24-9