Introdução

As crises, os tempos convulsos, os momentos de espanto, as situações de perplexidade coletiva, as vontades de agir têm mil lados... Este trabalho coletivo do Centro de Estudos Sociais (CES) tem apenas cem. Investigadoras e investigadores de diferentes áreas e perspetivas das ciências sociais e humanas assumiram o convite para reagir ao embate pessoal, cívico, político e intelectual da pandemia, elegendo temas que constituem problemas e desafios dos tempos que vivemos e justificam a construção de alternativas. Fizeram-no em vista dos seus trabalhos de investigação, dos seus contextos de trabalho, do seu impulso mais imediato ou, enfim, das suas preocupações mais sentidas.

Estão ditas e reditas as muitas razões pelas quais a pandemia nos colocou perante o inesperado e aquilo que nunca sentimos deste modo. O choque, a inquietação, o sentimento profundo da amplitude das vulnerabilidades, tudo isto assumiu uma densidade que nos esmagou. Isso é claro. Mas também é verdade que as ciências sociais críticas, capazes de interpelarem e interpretarem o mundo, não ignoravam as tensões sobre as quais a vida coletiva tem assentado, as desigualdades geradas pelos desequilíbrios profundos das nossas sociedades, a geração de poderes cada vez mais assimétricos, a predação exercida sobre o ambiente, as sociabilidades, os recursos ou os processos que deviam ser sustentáveis. Para lá da superficialidade voyeuse das “previsões” e das profecias ou da ansiedade das explicações fáceis, havia já, houve sempre, um conhecimento profundo, inquieto, próprio de quem estuda as múltiplas dimensões da vida e reconhece problemas, sabendo que a maior parte deles é fruto de construções institucionais, de deliberações políticas e de relações indesejavelmente desequilibradas. E havia, evidentemente, uma noção clara acerca dos pontos fulcrais da construção de uma sociedade boa, uma sociedade onde o acesso ao bem-estar, ao conhecimento ou à cultura assentasse numa ideia de justiça e em princípios permanentes de ação no sentido do cuidado, da vitalidade de mecanismos de inclusão que, não surgindo espontaneamente, tinham de se basear em formas de governo que resultassem da democracia e da legitimidade que ela confere e em instituições sólidas.   

O que aqui se apresenta é, porventura, a soma do que já nos preocupava e do que passou a perturbar-nos. Não foi a pandemia que nos inventou, foi a pandemia que nos mobilizou e, porventura, recriou os nossos processos de trabalho e a nossa posição na ciência, na universidade, na sociedade. Sendo o resultado do que já descrevi, os temas aqui reunidos não carecem de uma racionalização que certamente os desvirtuaria. Mas admitem interpretações variadas. Está aqui presente muito do que tem a ver com a nossa vida material, institucional e política: a economia, a financeirização, o trabalho e as profissões, as diversas manifestações das desigualdades, o ambiente, os diferentes espaços de poder, enfim, o capitalismo, o socialismo e a democracia. Mas também aqui está o que faz parte das sociabilidades, do espaço público, da multiplicidade de relações que se criam em cada sociedade e no mundo, da política, dos direitos, dos significados e das representações, das intimidades, do individual e dos contextos em que ele se enquadra. Do mesmo modo que encontramos nestes temas as questões da ética, do conhecimento, da poesia, das humanidades, das artes e da cultura, num apelo à complexidade e à nossa capacidade para nos sentirmos completos e inteiros. Os trabalhos aqui reunidos não procuram ser representativos. Nem do que se faz no CES nem da totalidade do que tem de ser inventariado para um debate em que se discuta tudo o que é preciso debater para nos reorganizarmos. São exemplos de múltiplas formas de sentir e de entender. E de sugerir ações. Não ações messiânicas, mas ações democráticas.            

Para lá do que se exprime em cada tema, pressente-se a radicalidade da pandemia perante o que, imprudentemente, se tornou intrínseco nas nossas sociedades e que agora foi posto em causa como nunca tinha sido antes: a vertigem acumulativa e predatória do capitalismo e a sua incessante tendência para acentuar as mobilidades e quebrar pertenças, para desenraizar a vida material das comunidades – nacionais, regionais ou locais – que deviam ser a sua base e a sua finalidade; o estreitamento das instituições e dos contextos da vida; a segmentação do conhecimento e das práticas; a emergência de formas violentas de sujeição das sociabilidades; o poder dos discursos; a necessidade de interpelar instituições e de reconfigurar os acessos ao que é essencial. Tudo, afinal, o que é incompatível com o que a pandemia nos sugere quando é necessário salvaguardar a vida, reconstituir relações, fortalecer a sociedade através dos seus mecanismos mais elementares, reorganizar a economia enquanto capacidade de resposta às necessidades essenciais, beneficiar do Estado e da ação pública no interesse geral ou refazer o mundo na suas complexidade, na dignidade de tudo o que o constitui – e não numa ilusão globalista que ignora a vida para apenas promover interações sem espessura. Criou-se instabilidade, produziu-se vulnerabilidades, exauriu-se o que dá mais solidez à economia, à sociedade e à vida e recebemos de volta uma pandemia. É esta noção forte que tem de nos acompanhar quando não queremos um regresso a um “normal” – que nunca ninguém definiu em proveito de todos – e que é a palavra que mais exprime a opacidade que pairava sobre o mundo que desabou com a pandemia e que não pode perdurar para pensarmos um futuro que está por construir.

Os textos que aqui ficam têm autoria, estão assinados e, como é óbvio na academia, representam o que quem os escreveu pensa e propõe. Há uma estrutura implícita em cada um: identificam um problema e sugerem uma alternativa. Mas não fecham a discussão. Pelo contrário, como é natural em textos de pequena dimensão, deixam assuntos em aberto, convidando a que se prossiga o diagnóstico e a busca das alternativas.

José Reis