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Antropoceno
António Carvalho

O Antropoceno é a época geológica proposta para ilustrar a indissociabilidade entre as ações humanas – a partir da Revolução Industrial – e as respostas ao nível planetário às alterações climáticas, aquecimento global e fenómenos meteorológicos extremos. O capitalismo global tem reagido ao Antropoceno através de uma resposta hipermoderna, recorrendo a instrumentos como mercados de carbono, desenvolvimento de tecnologias emergentes para controlar e gerir a radiação solar e a multiplicação de dispositivos legais e burocráticos que aumentam as divisões entre Norte e Sul global, naturalizando o ímpeto extrativista do capitalismo.

O Antropoceno marca uma nova fase do capitalismo global em que a natureza e os sistemas terrestres são apropriados enquanto mercadoria, gerando novos desafios para os movimentos sociais. Se, por um lado, a metanarrativa das alterações climáticas é mobilizada por governos e instituições supranacionais para promoverem a hegemonia do capitalismo planetário, por outro, os movimentos de cidadãos têm de recorrer à expertise científico-técnica para justificarem as suas lutas.

A matriz tecnológica e científica ocidental está fortemente articulada com a expansão do capitalismo. É um desafio complexo escapar à narrativa do capitalismo verde, que se manifesta através de uma política material emancipatória associada a energias renováveis, carros elétricos e formas de consumo “sustentável”. A própria resistência de regimes populistas – como no Brasil e nos Estados Unidos – em reconhecerem a emergência climática reforça a narrativa técnico-científica que sustenta as novas formas de capitalismo, complicando a produção de novas ecologias de saberes.

Os movimentos sociais têm de se posicionar criticamente perante as transições para sociedades de baixo carbono, atentando de que forma a naturalização das alterações climáticas não poderá constituir uma legitimação de processos decisórios top-down que marcam uma nova fase do capitalismo global. É também necessário estabelecer pontes com grupos do Sul global e descentrar o Antropoceno da sua matriz branca e ocidental, atribuindo visibilidade às experiências e narrativas daqueles que sofrem na pele os efeitos das alterações climáticas.

É também urgente envolver as populações em exercícios participativos acerca das soluções tecnológicas propostas para fazer face ao Antropoceno, como a geoengenharia, evitando processos de dupla delegação que diminuem a capacidade dos cidadãos em influenciarem a arquitetura social e tecnológica contemporânea.

As ciências sociais devem concentrar-se em analisar a política material das alterações climáticas e transições associadas, abandonando uma matriz heurística dualista que não tem em consideração a agência material dos não-humanos. Nesse sentido, é necessário desenvolver novas ontologias e metodologias que permitam formas mais amplas de participação política para além do humano.



Como citar:
Carvalho, António (2020), "Antropoceno", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 23.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30226. ISBN: 978-989-8847-24-9