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Academia e ética do cuidado
Adriana Bebiano

A universidade é ainda imaginada como um lugar de privilégio, onde se está por devoção e amor ao conhecimento. À revelia desta representação, na verdade, obedece a uma lógica de empresa, com clientes, agências financiadoras, patrocinadores, metas de produção e financiamentos. Desde a década de 1990 que este modelo neoliberal de universidade se instalou a um nível global, tendo produzido uma cultura da performance rigorosamente vigiada por mecanismos que se autonomizaram, aparentemente sem sujeitos nem agência, e de onde foi rasurada a consideração pelo humano, materializado no corpo singular de cada académico/a, como tem vindo a problematizar Andrew Sparkes. Expressa em outputs – palavra sagrada da novilíngua académica – a narrativa do sucesso impera, funcionando como um instrumento de disciplinarização dos corpos, com custos tanto para a saúde e o equilíbrio emocional de cada um/uma de nós, como para o lazer, que deixou de ser um direito. Predomina um discurso moral da valorização do desempenho quantificado por métricas sem sentido, que produz uma cultura da culpa pelo tempo não ocupado de forma “útil” e “produtiva”.

A presente pandemia de COVID-19 tem o potencial de criar uma oportunidade para repensar este paradigma. Confinados, em companhia das pessoas próximas, libertos dos compromissos nos locais de trabalho, aparentemente os/as académicos/as passaram a ter “tempo”: tempo para o cuidado e os afetos; e também tempo para ler, ouvir, pensar, refletir, escrever, criar, isto é, cumprir a função social das universidades na sua origem. Esta é uma oportunidade única para optar pelo modelo slow science, primeiro proposto, em 2010, pelo coletivo Slow Science Academy: um conhecimento sólido, construído na profundidade, num tempo lento e no longo prazo. As primeiras semanas – as de confinamento – não são de molde a criar esperança na realização desta hipótese. O tempo em casa, não pode ser “tempo perdido”: verifica-se uma grande pressão para produzir mais – publicando artigos, realizando inquéritos, ou aparecendo em webinars que provam, de forma inequívoca, que os/as académicos/as continuam a ser úteis e a produzir. A webcam tornou-se na ferramenta da prova indiscutível de que a academia é produtiva, que merece o seu salário. A narrativa moralista do sucesso transferiu-se para o digital, apresentado como uma libertação quando, de facto, pela sua omnipresença, tende a funcionar como mais um instrumento de opressão que produz “corpos dóceis” – conceito que expressa a atualidade de Foucault.

A alternativa está no combate permanente por slow science; pelo direito ao ócio, indispensável para a criatividade; pelo direito ao tempo para o cuidado de si e dos afetos. A alternativa passa por uma ética do cuidado – proposta por Carol Gilligan, na década de 1980 – também no espaço de trabalho, na construção coletiva e solidária do conhecimento; na solidariedade humana, no regresso ao tempo com tempo para ter conversas “inúteis”, para o riso e para o choro – como defende Daphna Hacker –, manifestações humanas expressas na materialidade dos corpos. Só a opção por um tempo lento do conhecimento poderá devolver o humano à academia.



Como citar:
Bebiano, Adriana (2020), "Academia e ética do cuidado", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30222. ISBN: 978-989-8847-24-9