Há uns anos, lembro-me de termos num seminário do CES uma jurista, professora numa universidade espanhola, que tinha sido nomeada para uma comissão de ética de nível europeu e nos vinha falar dos horrores praticados por alguns laboratórios farmacêuticos sob investigação. Por as leis serem ainda omissas em relação a questões já então levantadas pelos avanços da novíssima ciência, estes laboratórios permaneciam inimputáveis apesar de, eticamente, os seus crimes serem uma evidência. Achava ela que as Humanidades seriam o último reduto para resistir à nossa desumanidade.
Numa espécie de fantasmagoria, essa desumanidade parece erguer-se de um pensamento abissal que vê “o real” como a única possibilidade e o limite último para o que existe. Essa fantasmagoria, que se nos impõe como se de um membro amputado se tratasse, é a da própria linguagem enquanto construção do pensamento, esse artifício, tão naturalizado, que nos esquecemos demasiadas vezes de que é apenas isso: um artifício – e um artifício que emerge do poder e no poder se consubstancia.
Lendo e ouvindo quotidianamente as notícias sobre a pandemia que vivemos, a desumanidade desse artifício torna-se uma evidência. Pelo meio dos números de mortos e infectados, entram, se não ao mesmo nível até como pior calamidade, os números do dinheiro. Pelo meio dos números dos caixões alinhados e dos profissionais de saúde (alguns já mortos ou infectados) a suplicar por ventiladores ou máscaras, entram, se não ao mesmo nível até como pior calamidade, os números das empresas e das falências. Pelo meio dos números dos refugiados e das caras reveladas a estender a mão para comer, entram, se não ao mesmo nível até como pior calamidade, os discursos dos políticos preocupados com uma economia parada, o desemprego, a crise do petróleo. Que os dois lados se encontram intimamente interligados não temos dúvidas, mas não seria eticamente mais correcto, digamos, mais humano, usar uma linguagem que deixasse claro que eles não significam o mesmo e que, muito menos, se equivalem?
Que podem as Humanidades – talvez o espaço em que a dor do membro amputado ainda se sente – fazer para acabar com a omissão das leis sobre estes crimes, na linguagem e não só, e/ou para transformar a terrível evidência de toda a nossa desumanidade? E, no meio de tudo isto, fazer-nos perceber que aquilo a que chamamos “o real”, essa construção na linguagem, nos dá apenas conta dos 4,5% da matéria visível no imenso universo que a nossa ciência consegue vislumbrar?!...
Talvez a grande responsabilidade das Humanidades, tal como alguns poetas querem para a Poesia (etimologicamente, o fazer primeiro que é o da linguagem), seja a de manter a capacidade de continuar a questionar. A questionar, talvez de forma anti-humanista, se as nossas palavras não devem antes adequar-se a um humanismo mais verdadeiro? A um humanismo que verdadeiramente possa situar-nos numa ponta distante de uma remota galáxia que ainda conseguimos ver? Se esta forma de nos organizarmos globalmente (ou globalizadamente) para viver as nossas tão frágeis e pequenas vidas é a que mais se adequa à tão insignificante, mas tão extraordinária, existência da nossa humanidade? A questionar se não nos é legítimo imaginar e/ou construir, na linguagem e não só, outras formas de organização?
Sim, terá de ser essa dissidência cognitiva a responsabilidade das Humanidades. Talvez com ela seja ainda possível ganhar outra dignidade para a vida. E para a morte.
* Por vontade da autora, este texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
Como citar: Capinha, Graça (2020), "A responsabilidade das Humanidades", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30184. ISBN: 978-989-8847-24-9