Como qualquer objeto novo, a COVID-19 propicia a formação de novas representações sociais. Por representações sociais entende-se um conjunto de conceitos, proposições e explicações originadas na vida quotidiana no decurso das comunicações interpessoais, que permitem transformar conceitos estranhos em familiares e criar um saber comum que permite a comunicação. As representações sociais formam-se de modo não consciente, nas conversas entre pessoas e pela informação difundida nos media, ancorando-se em sistemas de conhecimento e valores preexistentes. Elas constituem teorias leigas de interpretação do mundo e de orientação das práticas.
As representações sociais podem ser relativamente partilhadas – quando ancoradas em valores e experiências comuns – ou, pelo contrário, apresentar variações significativas (mesmo antagónicas), quando ancoradas em dinâmicas sociais desiguais ou conflituais. Se, numa primeira fase da pandemia de COVID-19, as representações visam sobretudo responder a uma necessidade de informação e comunicação, à medida que as consequências da propagação do vírus e das medidas adotadas para o deter adensam e visibilizam desigualdades sociais – opondo aqueles que possuem recursos para adotar práticas de prevenção e proteção àqueles que não os possuem – elas respondem à necessidade de dar sentido aos acontecimentos, manter uma identidade pessoal e social positiva e justificar práticas (próprias e de outros).
É conhecida a importância dos valores e normas salientes num dado contexto: enquanto a competição e o autointeresse estão associados a práticas de rejeição grupal e atos económicos antiéticos, a saliência da interconetividade e a interdependência criam uma consciência social e política propícia à defesa do bem comum. O destaque constante da morte, da competição por recursos escassos, da criminalidade, da incapacidade de resposta dos sistemas de proteção social, etc., nutre um clima social propício à formação de representações que justificam práticas antissociais, criando condições para que à crise sanitária e económica acresça uma crise societal.
A resposta à pandemia evidenciou a falácia da “ausência de alternativas”. Do mesmo modo que foi possível “parar”, é possível substituir o foco colocado na sobrevivência individual ou setorial, no autointeresse, no crescimento económico e na rentabilidade pelo foco na cooperação e interdependência, na ética de uma responsabilidade social partilhada, de atenção e cuidado ao outro e ao planeta, na importância da justa distribuição dos recursos, no respeito pela voz e dignidade de tod@s e de cada um/uma. Tal contexto normativo guiará a formação de representações que estimularão práticas colaborativas capazes de eliminar o sofrimento evitável e usar as experiências de sofrimento inevitável na construção de um mundo melhor. Para que tal seja possível é determinante não adicionarmos à prática de “lavar bem as mãos” a prática de “lavar daí as mãos”!
Como citar: Ribeiro, Raquel (2020), "Representações e práticas", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30182. ISBN: 978-989-8847-24-9