Henry Rousso sugeriu em La dernière catastrophe um fluxo da História pautado por épocas que integram módulos de organização política e social dotados de alguma harmonia, cada um determinado pelos efeitos de uma grande catástrofe inaugural. A palavra não é usada por Rousso no sentido mais comum, que a equipara à calamidade pública, mas em associação com o étimo que identifica a καταστροφή, a katastrophe – termo recolhido do drama grego, onde nomeava o momento em que a trama se voltava contra a personagem fulcral –, como expressão do fim súbito, da viragem, da mudança abrupta, perturbadora da ordem das coisas. Impondo ao mesmo tempo, a partir da memória nebulosa da vida que ruiu, uma cosmovisão forçosamente nova. Nesta medida, os instantes da Solução Final que impôs a Shoah, da queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, ou dos atentados do 11 de Setembro de 2001, forçaram alterações profundas no modo de os seus contemporâneos habitarem o mundo, balizando o fim de um tempo e a abertura de outro.
Quando os traços partilhados da vida em sociedade são, como agora, confrontados em todo o lado, pela vivência da pandemia de COVID-19, com o caráter repentino e irrevogável da sua transfiguração, passa a ser possível admitir que vivemos uma etapa crítica, inauguradora de um tempo novo. Nele viajam as formas de existência coletiva para uma outra realidade, sob novas condições e com novas exigências, enfrentando perigos, dilemas e hipóteses de natureza também diversa. Como num cenário de ficção pós-apocalíptica, deparamos – nos mesmos lugares que até agora habitámos, povoados pelas mesmas pessoas – com a projeção de práticas sociais e de realidades políticas de uma natureza inesperada. Por instantes, julgamos ter desembocado num sonho, onde muito do que antes fazíamos e esperávamos se confronta com práticas e esperanças de outra substância.
Percebe-se que deste transe o nosso universo irromperá diverso do que conhecemos. Certos contornos serão ineludíveis: mais reservas no contacto físico, maior atenção aos cuidados de saúde e higiene, e, após o sobressalto, uma perceção mais aguda da importância da vida partilhada à escala global, determinando mudanças que não serão de todo negativas. Uma maior capacidade de cooperação entre Estados e regiões na definição – ainda que lenta e contraditória – de políticas sanitárias e económicas comuns, também poderá trazer algo de positivo. Porém, desdobram-se os cenários sombrios: a desmaterialização das sociedades com o império do digital, o aprofundamento das distâncias entre nações e continentes, o crescimento dos preconceitos de natureza étnica ou religiosa, o reforço de regimes fundados num autoritarismo higienista, a imposição de uma pesada vigilância na circulação e no relacionamento, a hipervalorização da produtividade e dos ritmos do trabalho, a dilatação da precariedade e do desemprego. O pior será que as medidas restritivas serão justificadas por uma noção de bem comum fundada num imperativo de sobrevivência. A presente catástrofe torna, por isso, imperativa a produção de alternativas e de resistências que afastem as sombras.
Como citar: Bebiano, Rui (2020), "Paisagem depois da catástrofe", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 24.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30168. ISBN: 978-989-8847-24-9