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Lazeres confinados
Rui Gomes

Os que tiveram a experiência do confinamento durante a pandemia de COVID-19 relatam uma estranha sensação em que o tempo subjetivo ora acelerava ora se tornava lento. Como se estivessem numa cápsula do tempo ficcional em que as deslocações se fazem a velocidades inimagináveis sem que os indivíduos se deem conta disso fisicamente. Esta desconexão espaçotemporal é paradoxal quando se pensa em lazeres corporais porque nos habituámos a ver neles o arquétipo do movimento e da mobilidade. Algumas formas alternativas de lazer surgidas neste período, sobretudo as que envolveram exercitação remota, a utilização de formas simuladas de atividade física, ou de preenchimento da lentidão do tempo com e-sports, fizeram uma inversão da lógica motora habitual: o movimento foi substituído pela quietude ansiosa.

Por um lado, a velocidade do contacto virtual com os outros, sejam eles pessoas, objetos ou símbolos transmite intensidade; por outro, a paralisia do confinamento produz desalento. A sensação de velocidade deixou de ser uma característica do corpo em movimento e passou para os ecrãs da televisão e dos monitores do smartphone e do computador. A velocidade das pernas deslocou-se para a ansiedade óculo-manual dos teclados.

O confinamento foi uma oportunidade para a radicalização de tendências já existentes que entraram nos diferentes campos da vida como uma forma alargada do simulacro e de hiper-realidade.

A pandemia evidenciou os dois caminhos que se abrem aos lazeres. O primeiro corresponde à imersão na hiper-realidade que define uma condição material e mental de vida em que a distinção entre a coisa real e a sua imitação é abolida: espaços de férias que imitam e ampliam a sensação de exotismo; espaços fechados em regiões frias que reproduzem espaços luxuriantes de praias tropicais; espaços exóticos que integram referências reconhecíveis pelos turistas de outros continentes; atividades virtuais com monitores não presenciais; aplicações móveis que substituem a relação face a face; e-sports destinados a criar maior emoção entre os espectadores; espaços confinados amplificados por imagens em que se pode jogar golfe no hotel, futebol no quarto ou andar de bicicleta em paisagens selvagens sem sair de casa. Aquilo que está geograficamente distante parece muito familiar e o que está geograficamente próximo cria a ilusão de estranheza.

A via alternativa corresponderá a uma procura crescente dos deslumbres de espaços de natureza domesticada que sobraram no grande confinamento: os passeios pedonais ou de bicicleta à beira-rio ou à beira-mar; o exercício nos grandes pulmões das cidades, a fruição dos espaços comuns. Os ecolazeres já haviam ganho adeptos como reação ao artificialismo da vida e ao sedentarismo urbanos. Mas a experiência do confinamento deu-lhes um novo significado: a busca da lentidão reflexiva e de novos mapas cognitivos que se possam enraizar de novo num território e num lugar que deve ser protegido como um bem comum.



Como citar:
Gomes, Rui (2020), "Lazeres confinados", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 24.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30121. ISBN: 978-989-8847-24-9