Acesso das crianças ao direito e à justiça
Patrícia Branco, Paula Casaleiro

Apesar de a COVID-19 parecer contagiar menos as crianças – já que estão entre os grupos com menos contágios segundo dados da Organização Mundial da Saúde e da UNICEF (prevendo-se, contudo, que até ao final de 2020 poderão vir a morrer até 1,2 milhões de crianças em 118 países por causa de cuidados sanitários deficientes) –, o seu acesso ao direito e à justiça, em sentido amplo, foi particularmente afetado, tornando-as mais vulneráveis às desigualdades sociais e económicas provocadas pela pandemia.

O contexto de crise de saúde pública, social e económica ameaça os direitos das crianças à sobrevivência (direito a cuidados adequados e à alimentação), ao desenvolvimento (direitos à educação, à saúde e à sociabilização), à proteção (direito a ser protegida contra maus-tratos ou exploração) e à participação (direito de exprimir a própria opinião).

O acesso à justiça de muitas crianças foi também afetado pelas medidas excecionais e temporárias nesta área, com a suspensão dos processos não urgentes – como os de regulação da guarda, visitas, alimentos e responsabilidades parentais. O adiamento destas diligências pode agravar outro tipo de problemas e condicionar o direito à sobrevivência e à proteção. Simultaneamente, as medidas de prevenção de contágio durante e após o estado de emergência condicionaram também, de forma indireta, o acesso à justiça em casos de crianças em situação de risco ou em perigo através da suspensão da atividade das diferentes comissões de proteção de crianças e jovens e da escola, principais entidades sinalizadoras.

Neste contexto, e enquanto vários setores da sociedade se fizeram representar na discussão de medidas preventivas e de contenção da pandemia, as crianças viram-se confinadas, desconfinadas, o seu direito à educação (tele)confinado, sem que em momento algum pudessem fazer ouvir a sua voz e opinião. As crianças surgiram, assim, como um dos grupos menos visíveis.

A promoção do acesso das crianças aos direitos e à justiça deverá, em nosso entender, assentar em três dimensões centrais:

  1. Desmaterialização e digitalização processual que evite a suspensão dos processos e diligências em áreas críticas e facilite o acesso de crianças e famílias à justiça;
  2. Acesso universal a meios digitais e internet garantindo a manutenção do direito de acesso à educação e proteção. E ainda criação de linhas especiais de apoio e de informação;
  3. Promoção da democracia participativa das crianças, efetivando o direito a serem ouvidas quanto às suas necessidades particulares, com o envolvimento de associações de crianças, jovens e famílias na definição de medidas que as afetem de forma direta (como em questões de natureza pedagógica ou de necessidades educativas especiais, formas de sociabilidade com familiares e pares, apoio às famílias).

A COVID-19 veio não só revelar, como agravar, algumas das fragilidades já existentes em Portugal no acesso das crianças ao direito e à justiça. Assim, a importância destas medidas estende-se para lá da crise pandémica.



Como citar:
Branco, Patrícia; Casaleiro, Paula (2020), "Acesso das crianças ao direito e à justiça", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 25.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30084ISBN978-989-8847-24-9. ISBN: 978-989-8847-24-9