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Imagem|Agência Brasil
O trauma continuado de quem vive sob permanente tensão na periferia do Rio de Janeiro
Rio do lado sem beira
cidadãos
inteiramente loucos
com carradas de razão
À sua maneira
de calção
com bandeiras sem explicação
carreiras de paixão danada
São Sebastião crivado
nublai minha visão
na noite da grande
fogueira desvairada
Chico Buarque, Derradeira estação
O cotidiano da vida nas favelas do Rio de Janeiro não faz parte do noticiário regular: passado o tempo da romantização da pobreza – da lua que furava o telhado de zinco e salpicava de estrelas o chão do barraco, da “alvorada, lá no morro, que beleza” –, esse berço do samba foi se tornando refém de organizações criminosas que intimidam os moradores e disputam territórios com munição pesada. Favelas passaram a ser palco de episódios sangrentos da “guerra do tráfico” ou de operações policiais para combatê-lo, na mesma perspectiva bélica. Só assim são notícia.
A última notícia foi a mais trágica da história recente do país: uma megaoperação que envolveu 2.500 policiais, com o alegado objetivo de cumprir 100 mandados de prisão contra membros do Comando Vermelho, deixou 121 mortos nos complexos do Alemão e da Penha, na zona norte da cidade, no dia 28 de outubro. Desses, quatro eram policiais. Os demais seriam traficantes – ou “narcoterroristas”, na denominação adotada pelo governo do estado. Nenhum desses era objeto dos mandados, mas seriam todos bandidos, mesmo os que não tinham qualquer anotação criminal: segundo o secretário da Polícia Civil, quem estava na mata, na rota de fuga, “estava em confronto com a polícia”, logo, eram “narcoterroristas que saíram do anonimato”.
Cento e vinte e um mortos num único dia: eis aí uma cifra que deveria marcar um ponto de viragem na longa história de matanças nessa “guerra ao tráfico”, que tem seus antecedentes na perseguição a bandidos pelo Esquadrão da Morte dos anos 1960, com a breve interrupção ocorrida nos governos de Leonel Brizola (1983-87 e 1991-94). Mas, não: foi como se tivesse sido uma operação sangrenta como qualquer outra. Pesquisas feitas no calor da hora apontaram um apoio maciço – em média, de 70% – à operação e à classificação das organizações criminosas como terroristas, o que animou o governo a dizer que iria continuar com essas ações.
Em paralelo, saíram algumas reportagens, tanto na imprensa tradicional como na alternativa, sobre o trauma que uma chacina dessas provoca. Ou melhor: sobre o trauma permanente em que vivem os moradores dessas áreas há décadas.
“Após o cessar dos tiros, o medo ainda percorria os becos. Cerca de 29 mil estudantes ficaram sem aula até a sexta-feira [três dias depois da matança], relata Alan Miranda, do Observatório de Favelas. “No Alemão e na Penha, pelo menos 87 escolas tiveram as atividades afetadas, das quais 48 nem chegaram a abrir. A favela estava interrompida: praticamente todos os comércios e estabelecimentos mantiveram as portas fechadas, os projetos culturais e esportivos voltados às crianças, todos paralisados”.
Um desses projetos atende a 250 crianças e aposta na arte e no esporte – aulas de capoeira, jiu-jitsu, balé, teatro – e no apoio escolar, na tentativa de resistir à normalização da violência. Segundo a reportagem, a sede foi atingida pelos tiros, o fogo consumiu as cortinas. “Como trazer a atenção de uma criança para uma atividade, se a mente dela está num lugar que foi violentado, invadido e teve tantas coisas subtraídas?”, perguntava o responsável pelo projeto. “Para muitas crianças, ver esse cenário é reviver o barulho da madrugada”.
A reportagem cita estudo do Unicef, em parceria com institutos de pesquisa brasileiros, sobre os efeitos deletérios do convívio com a violência armada no aprendizado e na evasão escolar nas escolas do Grande Rio.
Outra reportagem, da CNN Brasil, dedicada a discutir os impactos de uma megaoperação como aquela na saúde mental da população, referiu estudo realizado pela ONG Redes da Maré em 2022 que relacionava estresse pós-traumático, ansiedade, depressão, fobias, insônia, perda de apetite, indigestão e tentativas de suicídio como alguns dos transtornos mais comuns entre os moradores que conviviam com essa violência. A sensação de medo é permanente.
“Quando você é exposto cronicamente a situações de risco, esses alertas passam a ser cronicamente ativados. As pessoas passam a ficar mais tensas, com mais dificuldade de relaxar, a ponto, às vezes, de nem perceber que estão com esse sistema de alerta ativado, mas cronicamente, isso leva a desgaste emocional e aumenta o risco de transtornos de ansiedade e adoecimento emocional”, explicou o psiquiatra e professor da USP Daniel Barros à CNN.
Reportagem do jornal O Globo publicada dias antes da matança falava dos traumas dos trabalhadores que viviam ou circulavam próximo às regiões controladas pelas organizações criminosas: por exemplo, uma professora de Matemática que, depois de coagida a “revisar os cadernos de contabilidade do tráfico para confirmar se um homem que cuidava das finanças da facção estava desviando dinheiro, antes que o ‘tribunal do tráfico’ o executasse”, afastou-se do trabalho e passou a tomar remédios controlados. Ou o enfermeiro que, durante seu plantão num posto de saúde, teve de se manter de pé para continuar um procedimento num paciente, durante um tiroteio, enquanto os demais utentes se atiravam ao chão. Ou motoristas de TVDE, que foram parados em barricadas e desistiram de continuar na profissão. Ou motoristas de autocarro que tiveram seus veículos atingidos por tiros ou viram entrar gente armada com fuzil. Trabalhando em linhas que passam por áreas de risco, eles se comunicam num grupo de WhatsApp para, em dias de tiroteio, desviarem a rota.
No dia da matança no Alemão e na Penha, o caos se espalhou por várias zonas da cidade. Autocarros foram sequestrados e atravessados nas ruas, servindo de barricadas. O transporte público foi interrompido por horas. Boatos se disseminaram nas redes e provocaram o pânico.
Mas nada se pode comparar ao sentimento de quem viveu a situação e testemunhou a cena daqueles corpos que iam sendo depositados lado a lado no chão da praça, enrolados em cobertores e lençóis, formando um tapete que só aumentava com a chegada de mais cadáveres resgatados no meio da mata. E as mães, avós, tias, irmãs, parentes em geral ali, a tentar identificá-los, a desabar em prantos diante da confirmação da tragédia.
Dias depois da chacina, o jornal da Associação de Docentes da UFRJ publicou trechos de depoimentos representativos de três gerações: o de um menino de 8 anos que quer “mudar de país” e ir para “aquele da neve”, para “fazer boneco de neve”, porque lá não vai mais ouvir tiro e “deve ser muito legal”, o de uma mulher de 44 que fala nas “vivências e dores impossíveis de mensurar” e o de outra de 76, que perdeu um filho há mais de 30 anos. “Cada vez que tem morte”, diz, “eu revivo essa dor, sendo perto ou sendo longe”. E fala no silêncio que se instala após cada chacina como o pior barulho que existe: “É o barulho do medo”.
São depoimentos que expõem o tamanho do trauma:
B., 8 anos
“No dia que aconteceu aquele negócio, eu fiquei muito nervoso. Eu tava na escola e todo mundo começou a falar que já tinha 22 pessoas mortas. Eu tenho medo disso. Não gosto. Eu comecei a chorar muito. Fiquei preocupado com a minha família e meu coração chega acelerou. Chorei tanto que ninguém conseguia me acalmar. Eu comecei a vomitar, porque meu estômago ‘ficou fazendo bolhas’. É muito ruim sentir isso. Quando a minha avó chegou pra me buscar, eu fiquei um pouco mais calmo, porque ela tava viva. Ela me levou para casa andando, porque não passava BRT [um tipo de autocarro]. Isso também me deixou assustado. Quando cheguei na casa da minha avó, o meu primo ainda não tinha chegado da escola. Isso me deixou muito nervoso de novo. Na televisão, tava passando muitas coisas feias. Tão feias que eu até fechava o olho e tapava o ouvido.
Eu espero que isso não aconteça mais, mas tem pessoas que defendem o que não é pra acontecer. Eu pensei: ‘quê isso, mundo? Logo perto do meu aniversário?’ Não quero que aconteça de novo. Na verdade, eu queria mudar de país. Aquele da neve, pra eu fazer boneco de neve. Lá eu acho que não vou mais ouvir tiro, deve ser muito legal.”.
M., 44 anos
“Nossas dores são invisíveis. São feridas que ninguém vê. São vivências e dores impossíveis de mensurar. Desde sempre, isso tudo foi muito ruim, mas de 2010 para cá, ficou pior. A UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] veio como uma linda promessa. A gente via tudo bonitinho lá na Zona Sul. Quando chegou aqui, não era nada daquilo. De 2014 a 2016 foram confrontos todos os dias. Os traumas foram se acumulando. Tem muitas pessoas que tomam medicação fortíssima. Eu mesma tomo tarja preta. Faço vários tratamentos e não consigo mantê-los sem ajuda. Uso medicação controlada. Sem ela, eu não consigo aguentar isso tudo. A polícia agora entra pontualmente às 4h30. Então, eu acordo todo dia às 4h, para não ser acordada pelas rajadas, porque é horrível despertar assim.
Temos jovens adultos que não sabem ler direito porque na época da alfabetização não podiam ir à escola por conta dos tiroteios. Há várias pessoas com pressão alta, ansiedade, transtorno pós-traumático, crise de pânico, depressão. Agora temos crianças também com esses quadros. Muitas crianças sofrendo alta pressão psicológica por conta da violência. São muitos danos, efeitos colaterais invisíveis.
A parte invisível da guerra não interessa… As pessoas da favela fazem o asfalto funcionar, mas o Estado não quer saber e nem a sociedade. Transformam a favela num campo de guerra, sem campo de refugiado. A gente não tem para onde ir. A gente vira escudo dos dois lados e a sociedade julga sem conhecer a realidade. Não sou contra a polícia, desde que ela faça o seu trabalho dentro da lei. Se o policial não cumpre a lei, ele é bandido igual ao bandido que ele diz combater. Eles queriam matar. Em nenhum outro momento teve tanta destruição. Foram quatro horas de tiros só na rua principal, do comércio. Destruíram tudo. Não tem como justificar o uso dessas armas de guerra. Quem negocia essas armas em vários idiomas? Se não tiver munição, não tem como ter tiroteio. Se a arma não chegar, o tráfico não vai conseguir fabricar uma arma sozinho. Os dois lados têm armas e a gente fica no meio, preso em casa, sofre calado, não pode falar”.
A., 76 anos
“Perdi um filho há mais de 30 anos e sei o que essas mães estão passando agora. Nenhuma mãe nasceu para enterrar um filho. É uma chaga aberta. Dói todo dia saber que seu filho morreu sozinho, sem você estar perto. Morreu sem você poder amparar sua cabeça, sem dizer que vai ficar tudo bem, como fazia quando ele era criança e tinha medo nas noites em que a luz faltava no barraco. Cada vez que tem morte, eu revivo essa dor, sendo perto ou sendo longe.
Os traumas são muitos e só se acumulam. Tem gente morrendo do coração de repente. É de repente, porque não tem aviso, mas é resultado de muitos maus-tratos. Nós [moradores de favelas] somos as maiores vítimas dessas operações. O governo não oferece segurança, nem combate o crime, nem nos dá apoio. Não temos a quem pedir ajuda. Em quem confiar, quando eles [policiais] estão num dia atirando dentro da favela, no outro pegando ‘arrego’ [comissão combinada com o tráfico], no outro vendendo as armas que eles pegam em outra operação? Moro aqui há quase 70 anos e já vi muita coisa. Depois de uma operação horrível dessas, a favela fica em silêncio. Você sabia que o silêncio na favela é o pior barulho que existe? É o barulho do medo. Mesmo quando a matança acontece em outro lugar, mesmo assim, a gente cá fica com medo. Será que vem para cá? Será que vai morrer mais gente? Podia ter sido ‘fulano’, podia ter sido meu neto. Se você mora em favela, você é alvo. Pode ser adulto, velho, criança, estudante, traficante, trabalhador. Não importa nada. Tem um alvo grande no seu peito quando você mora aqui”.
Em 2007, o Rio de Janeiro preparava-se para sediar os Jogos Pan-Americanos. Uma operação policial, articulada com a Força Nacional de Segurança, cercou o Complexo do Alemão com o mesmo objetivo de combater o tráfico e, no dia da mais violenta incursão, produziu 19 mortos. O governador, Sérgio Cabral Filho, disse que a população deveria entender o “estresse da guerra” e o presidente, Lula da Silva, declarou que não se podia enfrentar a bandidagem com pétalas de rosas.
Agora, nos dias seguintes à barbárie, o repórter do Observatório de Favelas descreveu as manifestações de protesto, ressaltando a participação de crianças que imprimiram a marca de suas mãos molhadas em tinta vermelha nas suas camisolas brancas. E destacou a frase pichada também em vermelho na carcaça de um dos carros carbonizados durante o ataque: “Organize seu ódio”.
Sylvia Moretzsohn, Jornalista, Professora aposentada da UFF - Universidade Federal Fluminense.
Como citar este texto: Moretzsohn, S. O trauma continuado de quem vive sob permanente tensão na periferia do Rio de Janeiro. InfoTRAUMA, 36.
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