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Gaza e a realidade encriptada, mas traumática
O mais recente conflito israelo-palestiniano, iniciado em 7 de outubro de 2023 com os sangrentos ataques do Hamas e depois caracterizado por um genocídio cometido por Israel na Faixa de Gaza, segundo a avaliação de diversas organizações internacionais, é a primeira guerra transmitida em permanência desde o seu início, e em tempo real.
Nesse dia, as ações militares do Hamas e outros grupos armados palestinianos contra forças militares, policiais e civis foram registadas em vídeo e de imediato difundidas pelos atacantes, provocando forte impacto na sociedade israelita. O Governo de Benjamin Netanyahu, dependente da extrema-direita sionista com laivos messiânicos, comparou-as a num novo “Holocausto” e apelidou os palestinianos envolvidos de “animais”, entre outros epítetos, num claro objetivo de desumanização extensível a todos os 2,2 milhões de habitantes do enclave.
A partir dessa data, e até ao presente, Gaza é submetida, atendendo à dimensão do território, ao mais intenso ataque militar desde o final da II Guerra Mundial. Em paralelo, intensificou-se a limpeza étnica da Cisjordânia e em Jerusalém leste, ocupados desde 1967. A generalidade dos jornalistas internacionais foi impedida de entrar no massacrado enclave enquanto se acentuava o genocídio, confirmado em 16 de setembro de 2025 num extenso relatório da Comissão internacional independente promovida pela ONU e de imediato renegado pela liderança israelita.
Progressivamente, instalou-se um paradoxo. A campanha promovida por Israel na Faixa palestiniana será a mais bem documentada da história através dos ‘smartphones’ e redes sociais, sendo impossível prosseguir a ocultação. Em paralelo emergiu uma sofisticada “arte da negação” e sucessivas tentativas de impor uma realidade encriptada, fomentada pela maioria da sociedade israelita e absorvida por um discurso dominante repleto de “perceções”.
Esta situação implicou reações quase imediatas. À propaganda israelita contrapôs-se parte considerável da “opinião pública” à escala mundial, que se mobilizou contra um sanguinário quotidiano a que tinha acesso através de algumas televisões com repórteres no terreno, e pelas redes sociais.
Quase dois anos após a concretização de uma prática genocidária – o termo genocídio continua a ser evitado pela generalidade dos media e comentadores “institucionais” –começou a ser percetível o seu impacto no mundo. E os seus efeitos psicológicos começaram analisados e divulgados por especialistas.
O alerta tem surgido de vários organismos e associações internacionais dedicadas ao estudo do designado Distúrbio de Stress Pós-Traumático (normalmente referido PTSD), que pode surgir em diversas circunstâncias.
O “trauma em segunda mão” (Stress Traumático Secundário e Traumatização Vicariante) é uma das “variações” desta patologia abrangente, que pode implicar mudanças cognitivas, afetivas e relacionais, com impacto na alteração da visão sobre si próprio, sobre os outros e sobre o mundo.
A insistência na repetição de imagens violentas provoca um profundo impacto em quem lê, vê e ouve. A “exposição repetida” a situações limite, a contenção jornalística, a descontextualização na cobertura e tratamento noticioso de “acontecimentos traumáticos”, podem refletir-se na saúde mental não apenas das vítimas e seus próximos, mas também no público e nos repórteres enviados para guerras ou desastres.
Durante muito tempo, o stress pós-traumático era considerado assunto tabu, que ainda prevalece. A vergonha e a culpabilidade tinham como refúgio o silêncio, também entre os jornalistas assolados por um “fracasso” profissional em situações de grande tensão.
Num pungente testemunho, Pierre Barbancey, repórter de guerra para o diário francês L’Humanité, referiu que “o pior não são os cadáveres, mas o sofrimento dos que ficaram”. Após uma reportagem em Gaza em 2009, diz que ficou obcecado pelos gritos e pelas lágrimas das crianças. De regresso à família, admitiu ter afogado algumas das suas recordações no álcool.
Para quem observa e reflete, as contínuas imagens “que podem ferir a suscetibilidade dos espetadores” causaram angústia, insónias, sentimento de impotência, depressão, incómodo quase permanente. “Deixar de ver televisão” foi uma medida adotada e destinada a garantir “alguma sanidade”. Porque as guerras – e da Ucrânia com quase quatro anos – entram em direto nas casas, e à hora de jantar também se revelava a imposição da fome, a “matemática da fome”, como arma de guerra.
Em Gaza, nada foi poupado: escolas, hospitais, maternidades, bibliotecas, museus, cemitérios, locais de culto, organizações de ajuda humanitária, num processo sistemático de apagamento da identidade, da cultura, da memória e da história deste povo. Numerosas famílias foram dizimadas, dos avós aos netos, e muitas crianças foram impedidas de nascer, com o propósito de reverter o atual equilíbrio demográfico entre judeus e palestinianos.
Os palestinianos sabem que vivem num regime de apartheid, e que uma criança, um civil israelita, valem mais para o Governo sionista de Netanyahu que milhares de crianças ou de civis palestinianos. Os reféns israelitas têm cara e nome, os milhares de prisioneiros palestinianos não passam de números.
De início, as redações dos principais media estavam atomizadas. Tudo parecia assemelhar-se a uma representação, a um espetáculo. De novo, uma avaliação equilibrada da situação deixava de ser a norma. E apenas essa abordagem poderia contribuir para fomentar um diálogo aberto, e encorajar o respeito por diversos pontos de vista e perspetivas, que esvaziassem a clivagem entre narrativas profundamente polarizadas.
Instalou-se uma confusão permanente entre factos e opinião, que prejudicam as capacidades de discernimento e contribuem para a desinformação. À insistência quase diária sobre os “massacres do grupo terrorista Hamas”, que não devem ser esquecidos, sucedeu-se a “destruição de Gaza” e mais recentemente “a fome generalizada”.
No terreno, correspondentes de diversos media com destaque para a cadeia televisiva Al Jazeera, testemunhavam um dos maiores crimes de guerra da época contemporânea. Filmaram a morte dos outros e previram a sua própria morte. O balanço final está longe de concluído.
O Comité de Proteção dos Jornalistas já confirmou pelo menos 210 jornalistas assassinados, na maioria palestinianos. Para além da sistemática eliminação física de jornalistas e outros profissionais dos media no terreno de Gaza, considerados “terroristas”, também foram relatadas pressões e sevícias do Hamas contra vozes dissidentes.
O comentário “propagandístico” permaneceu instalado, em particular nos media ocidentais, suscitando perplexidade, dúvida, descrédito e revolta. Com o prosseguimento do assalto israelita, impôs-se uma “guerra de representação” mediática. E as decisões das direções editoriais – o que cobrir, que palavras utilizar nas aberturas das notícias, que imagens mostrar – influenciaram decisivamente a perceção das audiências sobre a situação no terreno.
As expressões utilizadas, ou omitidas, na generalidade dos noticiários tiveram um impacto prolongado. Os jornalistas palestinianos no terreno foram decisivos em contrariar essa narrativa. E o preço que pagaram e pagam é demasiado elevado.
Alguns media internacionais continuaram a insistir nessa enganosa inflexão. Em maio passado, o canal France 2 definia o plano militar de ocupação israelita de “plano de expansão ofensiva, com os habitantes não confrontados com um deslocamento forçado”, mas antes com “metódica evacuação estratégica”.
Outro media gaulês (Le Télégramme), referia-se a uma “extensão das operações militares”, e a limpeza étnica em curso era definida como um “projeto que organiza a ‘partida voluntária’ dos seus habitantes”.
Evitaram-se referências ao objetivo da anexação, antes a “um avanço do exército israelita”, que pretende “dividir o território e cortar os túneis do Hamas e isolar os seus combatentes”; não existe colonização nos territórios ocupados, mas “zonas onde Israel investiu”; não existem deslocações forçadas, mas “um ultimato” dirigido às populações “reféns do Hamas”; não existe massacres de civis, antes “populações que se expõem aos bombardeamentos” caso não se retirem; e que o objetivo final consiste na “destruição do Hamas e na libertação dos reféns”.
Ao apresentarem a propaganda israelita como uma “opinião”, tal como as outras, os media dominantes agiram como “fabricantes da dúvida” e permaneceram atores centrais no fabrico da desinformação, da “normalização” e “banalização” da barbárie.
Mas os protestos e as iniciativas solidárias alastraram pelo mundo. Em Portugal, a plataforma Apoiar Jornalistas em Gaza obteve uma importante adesão, e as recolhas de fundos também contribuíram para que continuassem a ser enviadas informações credíveis do enclave.
A “guerra de Gaza”, com os meios militares utilizados, a impunidade sem limites, a cumplicidade ou cinismo da generalidade da “comunidade internacional”, poderá constituir um inédito “balão de ensaio” para guerras futuras. Um cenário muito pouco auspicioso, no qual uma informação clarividente e uma população consciente e mobilizada talvez possam funcionar como um decisivo antídoto.
Pedro Caldeira Rodrigues, Jornalista.
Como citar este texto: Caldeira Rodrigues, P. Gaza e a realidade encriptada, mas traumática. InfoTRAUMA, 33.
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