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18-01-2024 #15

Nick Bolton | Covid 19 business closure Seattle Washington | 2020 @Unsplash


Sobre Tempos Idos

À medida que os anos nos afastam de um evento, mais ele se nos assemelha a um sonho. A urgência de saber mais abate-se à medida que uma nova realidade se impõe e nos questionamos sobre se esta não foi sempre a presente e estávamos apenas entorpecidos pelo confuso momento que marca a transição entre o sono e a vigília.

Foi em 2019, que uma pandemia veio agitar o mundo. Foi o revisitar de um sonho já ténue para uns e uma novidade para gerações que cresceram longe de guerras, pandemias e outras catástrofes. De um momento para outro, instalou-se a incerteza, a desesperança, o medo e com tudo isso a pressão de intervir e atenuar o impacto da pandemia não só no plano da saúde física, mas também mental.

Decorridos dois anos desde o início deste período conturbado, integrámos o estudo ADJUST1, um projeto pan-europeu, que procurou explorar quais os fatores que fragilizavam psicologicamente os indivíduos e os que os podiam tornar mais capazes de lidar com a pandemia. Com os dados recolhidos desenvolvemos 2 estudos – um que pretendia determinar a presença de sintomas de doenças psiquiátricas como a Perturbação de Stress Pós-traumático (PSPT) e a Perturbação de Ajustamento, em adultos portugueses infetados por COVID-19 e seus entes-queridos2; outro procurava determinar a relação entre os mecanismos de coping (forma como reagimos e enfrentamos situações desafiadoras ou stressantes) e Perturbação de Ajustamento num grupo de portugueses3, e compreender se estes mecanismos variavam ao longo do tempo durante a pandemia.

Relativamente ao primeiro estudo2, concluímos que em Portugal a presença dos sintomas de doença psiquiátrica nas pessoas que responderam ao questionário era semelhante a outras populações europeias. O facto de terem sido infetados com COVID-19 não influenciava um provável diagnóstico de Perturbação de Ajustamento ou de PSPT. Estes resultados podem refletir o facto de diversos condicionantes ambientais e pessoais poderem, a par com mecanismos biológicos da infeção, desempenhar um papel fulcral no aumento do risco de desenvolvimento de doenças relacionadas com o stress. Entre os indivíduos infetados por COVID-19, e em concordância com a literatura, a existência de história de doença psiquiátrica contribuiu para um maior número de sintomas de doenças relacionadas com o stress. Porém, contrariamente a outros estudos, em indivíduos infetados por COVID-19, o sexo ou outras características sociodemográficas não mostraram uma associação com o desenvolvimento de sintomas de doenças relacionadas com o stress. Verificou-se também que pessoas com entes queridos infetados revelaram mais sintomas de Perturbação de Ajustamento e de PSPT.

No que concerne ao segundo estudo3, a prevalência de Perturbação de Ajustamento, juntamente com a de Depressão e Ansiedade pareceu diminuir com o decorrer da pandemia. Em termos de coping, identificamos uma redução de mecanismos classicamente disfuncionais, como a expressão de emoções e a auto-culpabilização, apesar do aumento de outros, mostrando variações subtis em estratégias de coping específicas. Estratégias de coping ativas e reinterpretação positiva pareceram reduzir-se ao longo do tempo. Estes resultados sugerem mudanças psicológicas positivas com a pandemia, podendo refletir a capacidade de os indivíduos se adaptarem. Adicionalmente, identificamos que um estilo de vida mais saudável, sobretudo quanto a dieta, hábitos de sono e atividades prazerosas parece ser protetor para o desenvolvimento de Perturbação de Ajustamento. Contrariamente, procurar informação sobre o estado atual da pandemia parece ser um fator de risco. Além do mais, quer estratégias focadas no problema, quer na emoção revelaram uma correlação negativa com Perturbação de Ajustamento, pelo que podemos presumir que quer comportamentos ativos, quer esforços para a regulação das emoções são úteis para lidar com um desafio tão complexo como a pandemia COVID-19.

Os resultados por nós encontrados, a par com muitos outros, constituem uma valiosa visão sobre o impacto da pandemia da COVID-19 na saúde mental das populações. Um melhor entendimento sobre as características que tornam os indivíduos mais suscetíveis ao desenvolvimento de doenças relacionadas com o stress e os mecanismos de coping adotados neste período ajuda-nos a prever este impacto e a criar estratégias para o mitigar ou mesmo prevenir. Os nossos resultados sugerem uma necessidade de facilitação do acesso aos cuidados de saúde mentais como uma medida de melhoria da saúde pública em Portugal.

Com alguns anos decorridos desde o fim da pandemia, permanece importante determinar o impacto que ela teve na saúde mental das populações numa visão a longo prazo. Os desafios trazidos pela pandemia devem ser reconhecidos e continuar a ser abordados no rescaldo da mesma, não só para mitigar o seu próprio fardo psicológico, mas também o de futuras doenças que venham a afetar a saúde mental das populações. Apesar das particularidades deste novo evento stressor, ele não deve ser encarado como isolado. A história tem uma inquietante tendência para se repetir, sobretudo quando a memória nos falha. É preciso aprender com o passado para evitar os erros do futuro, e tal não depende apenas de estratégias coletivas, mas também individuais. O ser humano tem uma extraordinária capacidade de adaptação, o nosso reportório de coping é expansível e mutável - há esperança de tempos melhores que os anteriores, mas também de superação de tempos ainda mais desafiantes.


Ana Rita Severino (Médica Interna de Formação Geral)

Beatriz Ramos (Médica Interna de Formação Geral)


Como citar este texto:
Severino, A. R.; & Ramos, B. (2024, janeiro). Sobre Tempos Idos. InfoTRAUMA, 15.

1Lotzin, A.; Krause, L.; Acquarini, E.; et al. (2021). Risk and protective factors, stressors, and symptoms of adjustment disorder during the COVID-19 pandemic – First results of the ESTSS COVID-19 pan-European ADJUST study. European Journal of Psychotraumatology, 12(1).
2Ramos, B.; Figueiredo-Braga, M.; Sales, L.; et al. (2023). Posttraumatic stress disorder and Adjustment disorder among Covid-19 infected adults and their loved ones. Tese de Mestrado, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
3Severino, A.; Figueiredo-Braga, M.; Sales, L.; et al. (2023). Adjustment disorder during the covid-19 pandemic: the role of coping mechanisms and coexistent mental disorder. Tese de Mestrado, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

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