Maksym Kaharlytskyi | São Roque Park, Porto, Portugal | 2018 @Unsplash
Trajetos de Desenvolvimento: Crescer entre o risco e a resiliênciaNo nosso dia-a-dia é comum ouvirmos histórias de vida que nos intrigam, nos fascinam e nos espantam. Chegam-nos através de programas de televisão, biografias escritas ou (re)produzidas no cinema, de conversas com amigos, colegas, familiares ou vizinhos. São histórias que habitualmente associamos a luta, transformação, persistência, resistência (tantas vezes heróica), adversidade e superação. Perante estas histórias questionamo-nos “Como é que ele conseguiu passar por isto?”, mas também “Como é que ela não conseguiu lidar com aquilo?”, como se fosse possível isolar uma explicação para a complexidade do desenvolvimento humano. Perguntas lineares conduzem a respostas lineares pelo que, frequentemente, atribuímos explicações mágicas a histórias de vida difíceis, mas aparentemente bem-sucedidas. Mas será que estas respostas são suficientes?
No período pós-guerra, mais precisamente nas décadas de 1950 e 1960, diferentes investigadores procuraram identificar e compreender os fatores que contribuem para uma adaptação ajustada perante eventos críticos. Estes trabalhos deram holofote ao conceito de resiliência, definido por Masten (2014, p. 10) como “a capacidade que um sistema dinâmico (e.g., crianças, adultos, famílias, empresas) tem de se adaptar de forma bem-sucedida a perturbações que ameaçam a sua funcionalidade, viabilidade e desenvolvimento”. Com origem no latim (resilire, significa "voltar para trás" ou "recuar"), o termo resiliência foi conceptualizado originalmente no âmbito da física e da engenharia para descrever a capacidade de um material para retornar sua forma original após ser deformado. A definição original do termo tem subjacente características como flexibilidade e plasticidade, aspetos definidores daquilo que é, também, o funcionamento humano, daí que não seja totalmente surpreendente a adoção deste termo por parte de psicólogos e outros profissionais do âmbito das ciências sociais. De facto, o termo resiliência, tão banalmente utilizado nos dias de hoje, descreve a complexidade do desenvolvimento humano. Desde logo, alerta-nos para a impossibilidade de definir de forma estática o que é uma “adaptação ajustada” e o que são “eventos críticos”, dado que variam de pessoa para pessoa, de família para família, e são altamente suscetíveis à etapa de desenvolvimento em que cada um se encontra, assim como à rede de apoio e contenção disponíveis. Assim se compreende porque é que um determinado acontecimento (e.g., morte de um familiar, término de uma relação amorosa) pode ter impactos tão distintos em diversas pessoas.
O estudo da resiliência veio desmistificar a ideia da superação mágica, assente na sorte ou em talentos extraordinários. Veio, sim, destacar a importância de recursos banais e de fatores protetores, tais como: cuidado parental efetivo e de qualidade (para ativação do sistema de vinculação), relações de proximidade (emocional) com adultos competentes e cuidadores (e.g., avós, professores, cônjuge), funcionamento cerebral ajustado, autocontrolo e regulação emocional, capacidade de planeamento e resolução de problemas, motivação para o sucesso, perceção de autoeficácia, crença no sentido da vida, integração em comunidades e contextos escolares securizantes, entre outros. A resiliência é, assim, promovida pela existência de sistemas adaptativos universais (na medida em que diferentes pessoas de diferentes culturas partilham as mesmas funções biológicas e sociais), que protegem o desenvolvimento humano em diversas circunstâncias.
Para além de identificar os fatores promotores de adaptação, os estudos sobre a resiliência também demonstram que o risco é como um inimigo que está à espreita, constantemente à espera da oportunidade certa para aparecer e instalar-se. Sabe-se hoje que um único fator de risco prediz múltiplos problemas de desenvolvimento, sendo por isso um efeito cumulativo. Senão vejamos: uma criança que vive num contexto de pobreza, com grandes dificuldades em fazer uma alimentação adequada, pode ver todo o seu desenvolvimento (físico, cerebral e cognitivo) comprometido e aquilo que começou por ser um fator de risco desencadeia tantos outros.
Em conclusão, o estudo da resiliência trouxe uma nova compreensão sobre a forma como lidamos com as adversidades. A resiliência resulta da interação complexa entre recursos internos e externos, que não elimina o risco, mas minimiza os seus impactos. Neste sentido, enquanto comunidade, somos todos responsáveis por identificar o risco e atuar na prevenção. Se somos parte dos recursos externos de qualquer criança, adulto e/ou idoso, por inerência ao pertencimento comunitário, importa compreender que também nós somos os mágicos responsáveis pela superação de eventos stressantes (e.g., consequências de incêndios, catástrofes naturais, violência doméstica, diagnósticos de perturbação de desenvolvimento, entre tantos outros).
Alda Portugal, Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Professora no Departamento de Psicologia da Universidade da Madeira
Referências: Masten, A. S. (2014). Ordinary magic: Resilience in development. Guilford Press.
Como citar este texto: Portugal, A. Trajetos de Desenvolvimento: Crescer entre o risco e a resiliência. InfoTRAUMA, 23.
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