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29-07-2025 #32

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Precariedade e sofrimento ético no jornalismo



Os estudos sobre o sofrimento ético nas profissões têm privilegiado os setores da justiça e da saúde, mas a questão merece ser refletida também no âmbito do jornalismo. Esta possibilidade de trabalho é sugerida pelo mais recente estudo sobre a precariedade dos jornalistas em Portugal, Paixão não correspondida – Jornalistas precários em Portugal, em fase de edição, realizado pela Rede Interuniversitária de Estudos sobre Jornalistas (Riej).

Propondo-se definir um perfil do jornalista precário em Portugal, o estudo realizado pelo grupo de investigadores identificou 12 características do trabalho jornalístico em regime de precariedade. Tendo por base 29 entrevistas, a investigação perfila o jornalista precário como alguém a) que está sempre à espera; b) que faz um esforço para não ser esquecido; c) que se sente inferiorizado; d) que tem medo; e) que se sente substituível; f) que está cindido entre valores; g) que se sente entregue a si mesmo; h) que é objeto de vários tipos de assédio; i) que tem de optar entre a vida profissional e a pessoal e familiar; j) que está sob um stress profissional contínuo; k) que é um gestor de “sins”, “nãos” e “nins”; e l) que, mesmo quando a precariedade é uma opção de vida, paga um custo elevado pela sua liberdade.

O estudo da Riej surge na sequência da pesquisa realizada em 2020 sobre Os Efeitos do estado de emergência no jornalismo no contexto da pandemia Covid-19, numa parceria com o Sindicato de Jornalistas e a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ). No inquérito a 6.678 jornalistas inscritos, na altura, na CCPJ, 50,2 por cento dos 890 respondentes declararam não estarem abrangidos por um contrato sem termo. Embora neste número haja 7,3 por cento de jornalistas que indicam “outras” relações de trabalho não especificadas, os dados apontam para o caráter tendencialmente estrutural do regime de trabalho precário, devido à persistência destas “modalidades contratuais entre jornalistas mais velhos”. E conclui-se: “a precariedade deixou de ser um fenómeno exclusivo das novas gerações de jornalistas em Portugal”.

A perceção deste fenómeno levou os investigadores da Riej a aprofundar o tema, procurando recolher narrativas e experiências de vida dos jornalistas precários. Nas entrevistas, a maioria dos entrevistados declarou sentir-se profundamente realizada nos princípios e valores da profissão que escolheu, mas também profundamente irrealizada nas condições que a profissão lhe proporciona: “Sinto-me irrealizado na situação profissional, mas sinto-me realizadíssimo na condição de jornalista. Gosto do que faço, faço com muito gosto e acho que fiz coisas fantásticas. Fui mesmo muito feliz ao longo destes 30 e tal anos. A minha atual situação profissional não garante o sustento da minha família. Aí é que está o choque”, afirma um dos entrevistados no estudo.

Os baixos salários, a fragilidade de direitos de trabalho, a incerteza, instabilidade e imprevisibilidade da carreira profissional, a fragilidade remuneratória, a fraca proteção dos riscos de trabalho, nomeadamente o desemprego e a segurança social, são apenas algumas das queixas resultantes da situação de precariedade. Mas a elas associam-se sentimentos como a vulnerabilidade perante diferentes formas de assédio, o receio das implicações de não se responder a solicitações ou a expetativas, mesmo que indevidas, o sentimento de isolamento no exercício da profissão e, por vezes mesmo, não obstante os assinaláveis níveis de empenhamento ético e deontológico identificados, o sentimento de dissonância entre os valores do jornalismo e a prática profissional. O cinismo no trabalho está frequentemente associado a atitudes negativas individuais dos profissionais face à considerada falta de integridade das empresas e das organizações.


Interdisciplinaridades necessárias


É aqui que entra a questão do sofrimento ético, definido por Christophe Dejours como as consequências psíquicas resultantes de situações em que um indivíduo é levado, pela organização do trabalho, a contribuir para atos que o senso moral e os valores da profissão reprovam, podendo atingir a identidade dos sujeitos.

O conceito de sofrimento ético é o resultado das pesquisas realizadas depois da IIª Guerra Mundial, mas que só no final dos anos 80 e ao longo dos anos 90 conquistou a sua “legitimidade” enquanto objeto de estudo. Durante muito tempo, o conceito, em particular a expressão inicial de “sofrimento moral”, mereceu muitas críticas, quer da Sociologia, quer da Psicologia, quer ainda das organizações de trabalhadores que associavam a expressão a uma espécie de lamúria dos indivíduos. Nesta aceção, o sofrimento deveria ter uma expressão quantificável fisicamente, e não apenas de forma “moral”.

Dejours considera que as novas formas de dominação no mundo do trabalho geram sofrimento ético, que pode expressar-se na diminuição do empenho socioprofissional dos trabalhadores, em cinismo, como forma de autoproteção individual, e em atitudes mais patológicas que podem conduzir ao suicídio nos locais de trabalho.

Estas situações têm um impacto maior em profissões com um núcleo forte de valores, normalmente ligados ao dever de prestação de um serviço público, e, por vezes, normativizados em regulamentos e códigos de conduta. Dispositivos como os modelos de avaliação da performatividade dos trabalhadores, a criação de modelos de “qualidade total”, a normalização e estandardização das formas de trabalho, a sobrevalorização do papel das direções de comunicação externa e interna nas empresas e a precarização do trabalho são percebidos como formas contemporâneas de dominação. O objetivo é aumentar o isolamento dos trabalhadores, diminuir a ação coletiva, degradar a qualidade do trabalho e industrializar a prestação de cuidados e serviços.

A leitura de alguns textos de Dejours sugere uma identificação com muitas declarações efetuadas pelos jornalistas no estudo da Riej. Embora o autor considere que a elucidação do sofrimento ético não se dá pela análise moral e política, mas pela análise psicológica, eis, talvez, um campo onde o estudo dos media, a Sociologia e a Psicologia, nomeadamente a Psicodinâmica do Trabalho, podem dar-se as mãos.



Carlos Camponez, Universidade de Coimbra | Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade

Madalena Oliveira, Universidade do Minho | Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade



Como citar este texto:

Camponez, C.; Oliveira, M. Precariedade e sofrimento ético no jornalismo. InfoTRAUMA, 32.


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