Child in Gaza | Open Access
"E há só noite lá fora"1: (Qual) Infância em Gaza?
Na Faixa de Gaza, a infância deixou de ser um direito para se tornar uma ausência. Se há várias décadas esta tem vindo a ser profundamente marcada por privações severas e instabilidade, desde outubro de 2023 a escalada da violência atingiu proporções sem precedentes. A cada manhã, a incerteza é absoluta: qualquer espaço pode ser destruído num instante, qualquer estrutura de segurança emocional pode desmoronar-se sem aviso. Os laços afetivos, fundamentais para a resiliência infantil, são abruptamente (inter)rompidos. O tempo da infância, que deveria ser de descobertas e crescimento, foi sequestrado pela sobrevivência e pela morte.
Para as crianças, o conceito de lar deixou de estar associado à proteção: a qualquer momento, pode ser destruído. A escola deixou de ser um espaço de aprendizagem: tornou-se um alvo. A família, base da estabilidade emocional, é agora um elemento em risco, desfeita por perdas sucessivas. Sem tempo nem espaço para a reconstrução emocional, o trauma instala-se de forma crónica, entranhando-se na experiência de vida. Crescer passou a significar aprender a fugir, a esconder-se, a adaptar-se a um terror que não cessa.
Se a infância é, por definição, um período de construção da identidade e de desenvolvimento, em Gaza assiste-se ao seu colapso. As crianças não são apenas testemunhas da destruição: são os corpos e as mentes onde essa destruição se imprime de forma irreversível. No lugar da memória afetiva, constroem-se memórias de medo. No lugar da exploração do mundo, instala-se o receio de cada novo dia. O trauma não é apenas psicológico ou social; torna-se estrutural, moldando as relações, os afetos e a própria perceção do que significa existir.
O trauma infantil que aqui se desenha não é episódico. É cumulativo, complexo e prolongado, com manifestações múltiplas, intensas, profundas e duradouras. Entre os mais pequenos, são comuns sintomas regressivos como enurese, apego excessivo, choro persistente e dificuldades alimentares. Entre os 6 e os 12 anos, surgem frequentemente perturbações do sono, irritabilidade, retraimento social e resistência à escolarização. Nos adolescentes, observa-se um aumento vertiginoso da sintomatologia depressiva, crises de ansiedade, comportamentos de risco e dificuldades na gestão da raiva. A ausência de espaços seguros e de adultos emocionalmente disponíveis impede a mediação afetiva desses sintomas, transformando-os em experiências solitárias e, muitas vezes, incompreendidas.
O impacto no desenvolvimento emocional e relacional é também profundo. Crianças que enfrentam experiências traumáticas múltiplas e sucessivas desenvolvem frequentemente padrões de vinculação inseguros, medo do abandono e dificuldade em confiar em figuras de autoridade. O trauma, quando não reconhecido nem acompanhado, compromete a capacidade de regulação emocional, a empatia e o estabelecimento de vínculos saudáveis. A dor emocional não elaborada repercute-se no comportamento, na linguagem e nas expressões simbólicas, frequentemente manifestando-se através do silêncio, da agressividade ou da recusa em participar na vida social.
As consequências no desenvolvimento cognitivo são igualmente profundas. A sobrecarga emocional contínua compromete a concentração, a memória de trabalho e a capacidade de resolução de problemas. As crianças enfrentam barreiras acrescidas à aprendizagem, em parte porque os seus sistemas nervosos permanecem em estado de alerta constante. A escola, que deveria ser um espaço de proteção e de reestruturação, encontra-se muitas vezes encerrada ou destruída, interrompendo não só o acesso ao conhecimento, mas também o direito à normalidade e ao convívio com os pares.
O direito à brincadeira, ao repouso e à expressão cultural, pilares essenciais do bem-estar infantil reconhecidos pela Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), está gravemente comprometido. Em Gaza, o tempo lúdico, que permite integrar experiências, aliviar tensões e explorar o mundo de forma segura, foi substituído por rotinas de fuga, exposição constante a bombardeamentos e tiroteios, e pela procura desesperada de abrigo e bens essenciais. A ausência prolongada de experiências positivas e criativas fragiliza ainda mais os processos de recuperação emocional. No quotidiano das crianças em Gaza, a felicidade é, com frequência, uma miragem distante, um instante fugaz que se esvai antes de poder ser verdadeiramente vivido.
As redes familiares encontram-se, por sua vez, fragmentadas. A perda ou separação dos cuidadores principais, o luto não elaborado e a sobrecarga económica e emocional dos adultos dificultam o exercício da parentalidade em condições de apoio e estabilidade. Em alguns casos, adolescentes assumem responsabilidades parentais perante irmãos mais novos, num fenómeno de adultização precoce que compromete a sua própria trajetória de desenvolvimento. A ausência de apoio institucional adequado reforça o risco de isolamento e de perpetuação de sintomatologia.
A proteção da infância em contextos de conflito armado não pode ser considerada uma dimensão secundária das respostas humanitárias. A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e outros instrumentos jurídicos internacionais estabelecem a obrigação de garantir o direito das crianças à vida, à segurança e ao desenvolvimento integral, independentemente do contexto político ou geográfico. Na Faixa de Gaza, a exposição prolongada a níveis extremos de violência, deslocamento e privação compromete não apenas o bem-estar imediato das crianças, mas também a sua saúde mental, as suas trajetórias de desenvolvimento e a resiliência das comunidades a longo prazo. O reconhecimento da infância como uma fase crítica, que exige proteção reforçada, deve traduzir-se na implementação de estratégias eficazes e sustentáveis, assegurando condições mínimas de segurança, previsibilidade e acesso a serviços essenciais.
1Fernando Pessoa (1946). Odes de Ricardo Reis (p. 38). Lisboa: Ática. Retrieved from http://arquivopessoa.net/textos/768.
Sónia Ferreira, Especialista em Planificação, Monitoria, Avaliação e Investigação, Organização Mundial da Saúde
Como citar este texto:
Ferreira, S. "E há só noite lá fora": (Qual) Infância em Gaza?. InfoTRAUMA, 29.
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