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27-11-2023 #13

Margarida C. Ribeiro |Jardim Tropical de Belém, Lisboa: Base de busto desaparecido | 2023


Traços da história e do trauma

Des-colonizar foi o projeto pós Segunda Guerra Mundial, ou seja, no sentido literal expresso pelo prefixo, desfazer o mundo criado pelo colonialismo. Seria possível? Os primeiros passos foram dados a Sul, com as lutas de libertação que levaram à (re-)conquista dos territórios colonizados e à descolonização política; a norte, com a vinda para a Europa de milhares de pessoas com vivência colonial e com o regresso da Europa às suas dimensões territoriais continentais.

Estes movimentos de grande escala e impacto desenharam e continuam a desenhar o que designamos de mundo pós-colonial, mas o ato colonial não terminou com quem o executou, nem com quem o sofreu. Ele continua e passou para as gerações seguintes sob a forma das figuras do ex-colonizador e do ex-colonizado que complexamente reencenam uma fantasmagoria que interroga a essência das sociedades multiculturais europeias. E de que modo estas memórias e estes fantasmas intergeracionais e transnacionais se transmitem e são reelaborados pelas gerações seguintes, criando, para utilizar um conceito de Roberto Fernández Retamar referindo-se à América Latina, uma “cultura de descendentes”1, ou seja, no caso europeu, de um europeu com memória angolana, congolesa, argelina? Hoje estes “descendentes” são sujeitos e corpos políticos europeus que assumem memórias e identidades transnacionais e transterritoriais e, nas suas produções artísticas que marcam o espaço europeu, da literatura à música, das artes visuais às artes performativas, do cinema à dança afirmam pertenças, recuperam histórias, questionam arquivos, continuam lutas, lançam questões2. Por isso, nas discussões contemporâneas sobre as heranças coloniais europeias, a história, a memória e a pós-memória têm vindo a adquirir uma grande relevância política, colocando sob suspeita o contrato historiográfico, social e político sob o qual vivíamos.

Os movimentos globais de Black Lives Matter ou Rhodes must Fall e as suas diversas declinações em várias cidades europeias são a expressão mais mediática de uma consciência histórica que se desdobra numa série de interrogações e de demandas, e assinalam um tempo em que assistimos a uma globalização da relação entre o lembrar o passado e o demandar justiça no presente. Inicialmente de caráter nacional e até regional, estas manifestações encontraram eco numa demanda de justiça global ligada à história dos acontecimentos e à reivindicação da herança política de vivências e experiências politicamente intensas das gerações anteriores, ou seja, daquelas que viveram as heranças da escravatura, do tempo colonial, das lutas, dos conflitos, das descolonizações, da desterritorialização, da perda, mas também da alegria da libertação e das independências. A injustiça e o sofrimento que estes movimentos evocam e que muitos artistas trabalham e comunicam esteticamente, não são uma abstração. Baseiam-se na história, em experiências de vida e em heranças reclamadas, que tem um contexto histórico e cultural e uma realidade política, social e económica concretas. Não se trata, portanto de problemas ou disfunções sociais ou psicológicas de determinados sujeitos ou grupos, mas de problemas políticos de profunda raiz histórica global, que analiticamente exigem uma abordagem sofisticada e, politicamente, reclamam um reconhecimento.

É neste contexto que algumas correntes da antropologia cultural e da psiquiatria falam hoje da existência de um sofrimento pessoal ou coletivo em determinadas comunidades, que tem raízes histórias e políticas e começa-se a preconizar noções como “trauma histórico”, ou seja, a refletir sobre a forma como passados traumáticos determinam a nossa imaginação política global e a nossa consciência histórica na contemporaneidade enquanto indivíduos e enquanto cidadãos. Mostram-nos ainda como noções da clínica como stress pós-traumático relativos à intimidade de um sujeito, descontextualizados de um conhecimento profundo dos contextos históricos e políticos em que o trauma ocorreu, podem contribuir para ocultar as raízes políticas, raciais, religiosas ou históricas do sofrimento que hoje se exterioriza e se manifesta na sua relação com contextos do nosso presente3. Trata-se, portanto, de olhar o fenómeno do trauma e da herança traumática de uma forma multidisciplinar, e que envolve o privado e o público, o objetivo dos processos históricos e políticos e o subjetivo destes processos nos sujeitos que os viveram ou vivem e nas gerações seguintes.

Termino com uma homenagem ao povo palestiniano pela voz de um dos seus poetas maiores, Mamouhd Darwich4:

À minha mãe

Tenho saudades do pão da minha mãe,

Do café da minha mãe,

Do carinho da minha mãe...

Estou a crescer,

De dia para dia,

E amo a vida, porque

Se morresse,

Teria vergonha das lágrimas da minha mãe!

Se um dia voltar, faz de mim

Uma sombrinha para as tuas pálpebras.

Cobre os meus ossos com a erva

Baptizada sob os teus pés inocentes.

Ata-me

Com uma mecha dos teus cabelos,

Um fio caído da orla do teu vestido...

E serei, talvez, um deus,

Talvez um deus,

Se tocar o teu coração!

Se voltar, esconde-me,

Lenha, na tua lareira.

E pendura-me,

Corda da roupa, no terraço da tua casa.

Falta-me o ânimo

Sem a tua oração diária.

Envelheci. Faz renascer as estrelas da infância

E partilharei com os filhos das aves,

O caminho do regresso...

Ao ninho onde me esperas!


Mahmoud Darwich (ou Darwish)


Margarida Calafate Ribeiro, Investigadora Coordenadora CES e Coordenadora do Observatório do Trauma


Como citar este texto:
Ribeiro, M. C. (2023, novembro). Traços da história e do trauma. InfoTRAUMA, 13.


1Roberto Fernandez Retamar, Algunos Usos de Civilizacion y Barbarie y Otros Ensayos, Buenos Aires: Contrapunto, 1989.

2Neste site pode aceder a uma base de dados com mais de 500 artistas e mais de 1500 obras em que as heranças do colonialismo, das guerras coloniais e das lutas são reapresentadas pelas gerações seguintes. https://reimaginaraeuropa.ces.uc.pt/inweb/paginaEntrada.aspx?Lang=PO&f=artistasObras

3Roberto Beneduce, “Traumatic pasts and the historical imagination: Symptoms of loss, postcolonial suffering, and counter-memories among African migrants”, Transcultural Psychiatry, 2016, Vol. 53(3) 261–285.

4Partilho a nota de Maria Cantinho, a quem agradeço o acesso ao poema: “Nota: em princípio a tradução é de Albano Martins, responsável pela seleção e tradução de poemas no livro "Jardim Adormecido", o único editado em Portugal.”

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