|
Imagem|Pixabay
Fogo que arde… e que se vê
Segundo o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), ano de 2024, dos 6.255 incêndios rurais ocorridos resultou um total de 137.651 hectares de área ardida (Fundação Francisco Manuel dos Santos - PORDATA, 2025; Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais, 2025). Em 2025, até 18 de agosto, segundo os dados provisórios disponibilizados no mapa interativo do website do ICNF, obtidos com base no Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais (SGIF), já haviam ardido 185.753 hectares, em 6.414 ocorrências.
Enquanto o país arde, vemos inúmeros relatos televisivos da população, de autarcas, de operacionais, e, até, de jornalistas, não só sobre a falta de meios para combater estes incêndios que deflagram por Portugal inteiro, mas sobre a memória que o incêndio de Pedrógão, que durou uma semana em 2017, queimou em todos nós. Serve, ainda hoje, de exemplo do pior que o fogo pode trazer-nos, reavivando a memória da “Estrada da Morte” (Observador, 2017), de que, ainda hoje, como população, tememos falar em voz alta, ficando implícito o horror sentido nesses 7 dias de inferno nacional.
Numa meta-análise publicada em 2025, Zortea e colegas analisaram 64 artigos de investigação realizados entre 2012 e 2022, cujo intuito seria o de compreender melhor a relação entre desastres naturais e ideação e comportamentos suicidas, tendo o seu trabalho concluído por uma relação entre a exposição a desastres naturais e um risco acrescido de ideação suicida e comportamentos suicidas não-fatais, dependente do nível de vulnerabilidade psicossocial do indivíduo, dos recursos locais disponíveis e da disponibilidade de apoio da rede de suporte e da rede de apoio local.
Quando abrimos o mapa de Portugal online, é difícil escapar ao olho mais distraído que as ocorrências ativas se localizavam, maioritariamente, no interior do território nacional, regiões que se encontram, por si sós, em escassez de recursos, de investimento, de meios… Coloca-se a questão de saber se não estaremos, de forma inconsciente, a criar as condições perfeitas para que as vítimas dos incêndios, as que sobrevivem a estes desastres, se tornem vítimas graves do que vem depois, do que vem quando o fogo, finalmente, se resolve e a exposição mediática se dissipa.
Em 2021, Johnston e colegas concluiram que o nível de satisfação com a vida é significativamente reduzido no ano do desastre; no entanto, o declínio da saúde mental dos indivíduos afetados pelo desastre verificava-se, apenas, um ano após o desastre. Estes dados corroboram o desenvolvimento de sintomatologia psicopatológica derivado da falta de apoio da rede social e sistémica disponível durante e imediatamente após a efetiva sobrevivência ao desastre. Estes efeitos podem, naturalmente, ser aliviados por medidas políticas que promovam a recuperação da região e, consequentemente, da qualidade de vida da população afetada, no entanto, é importante ressalvar a necessidade da existência de meios de apoio psicológico, médico, e autárquico para a construção de uma sensação de segurança protetora do bem-estar individual, assegurando as necessidades básicas da população de modo a protegê-la dos efeitos negativos de um evento potencialmente traumático.
Quando falamos de eventos potencialmente traumáticos, falamos de eventos que, sem o devido apoio, sem as medidas adequadas e necessárias para a boa recuperação dos indivíduos afetados pelo evento, deixam neles marcas profundas que podem manifestar-se em insónias, sonhos vívidos, perturbadores e recorrentes, memórias intrusivas do evento – na forma, por exemplo, de sons ou de cheiros – e flutuações de humor, sintomas característicos que, mantendo-se ao fim de 1 mês pós-desastre, se qualificam como sintomas de uma perturbação de stress pós-traumático (American Psychiatric Association, 2013).
É importante sublinhar a importância de proteger quem vive estes desastres naturais em primeira mão da cobertura mediática que envolva imagens do desastre natural experienciado, a qual, sem darmos conta, pode reativar toda a experiência traumática e agravar o prognóstico psicológico. Aqui, talvez, se encontre o desafio para a imprensa, de encontrar o equilíbrio entre lembrar à população e aos governantes os lesados e proteger estes mesmos de uma reativação da experiência traumática de que foram vítimas.
O fogo arde, destrói, e, enquanto é visto, parece haver, em todo o país, uma onda de revolta misturada com solidariedade em nome de quem sofre com a sua destruição, mas é quando ele se extingue que vem uma nova onda de vitimação de quem já sobreviveu ao seu pior pesadelo e se depara com toda a destruição que daí advém, altura em que a tão presente exposição mediática durante o desastre já não existe e em que o sentimento de revolta se desloca para o novo desastre. Afinal, quem poderá sentir-se seguro depois de um desastre natural, quando não há um apoio social eficaz, quando já toda a atenção se desviou para o novo problema, sem remediar, ou lembrar sequer, o que se perdeu?
A verdade é que seguimos em frente, esquecemos as notícias que nos foram preenchendo os dias, a uma distância segura do desastre. E quem não pode, ou não consegue, seguir em frente? E quem viveu o desastre em primeira mão, quem fica para lidar com os destroços, sem o apoio necessário para sobreviver ao depois-do-fogo? Onde ficam eles? Como ficam eles? E como ficamos nós, sabendo que os abandonámos? Como encontramos o equilíbrio entre não esquecer e não causar mais sofrimento?
Daniela de Carvalho - Psicóloga Clínica - Agitorna e Sigmund - Centro de Psicologia e Desenvolvimento Humano
Referências American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (5th ed.). doi:https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425596
Fundação Francisco Manuel dos Santos - PORDATA. (2025). Área Ardida e Incêndios Rurais em Portugal Continental. Relatório Estatístico, Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, Direção Nacional de Gestão do Programa de Fogos Rurais.
Johnston, D. W., Önder, Y. K., Rahman, M. H., & Ulubasoglu, M. A. (2021). Evaluating wildfire exposure: using wellbeing data do estimate and value the impacts of wildfire. Journal of Economic Behaviour and Organization, pp. 782-798.
Observador. (2017). As Fotos Na Estrada da Morte. Observador. Obtido de https://observador.pt/2017/06/18/as-fotos-na-estrada-da-morte/
Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais. (2025). Relatório anual de atividades do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR) 2024, versão retificada de acordo com a Adenda que reflete os contributos da Policia Judiciária recebidos no dia 26 de junho de 2025. Relatório de Atividades.
Zortea, T. C., Kõlves, K., Russell, K., Mathieu, S., & Platt, S. (23 de January de 2025). Natural Disasters and Suicidal Behaviour: An Updated Systematic Review. Journal of Affective Disorders(375), pp. 256-292.
Como citar este texto: Carvalho, D. Fogo que arde… e que se vê. InfoTRAUMA, 34.
|