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28-01-2025 #26

Correspondência enviada por José Vitoriano (prisioneiro político durante cerca de 17 anos) quando se encontrava preso no Forte de Peniche, ao seu filho, Carlos José Vitoriano.


Os impactos da ditadura do Estado Novo nas famílias dos opositores políticos


Marianela Brazão Valverde teve o pai preso pela PIDE quando ainda criança. Adulta, trabalhou como investigadora o impacto da ditadura nos familiares dos opositores políticos, tendo entrevistado uma centena de pessoas nessas condições para a sua tese de doutoramento em História Contemporânea, que aliás dedicou “Ao meu Pai, sempre presente na minha memória e a razão deste percurso”. Pedimos-lhe que nos falasse da sua investigação neste número do Infotrauma:


Embora normalmente esquecidos pelos historiadores, os familiares dos opositores políticos à ditadura do Estado Novo transportam consigo memórias que permitem reconstruir a historiografia, contribuindo para novas leituras e visões do acto de resistir. Tendo realizado 101 entrevistas com filhos de militantes antifascistas, pudemos verificar que, na maioria dos entrevistados, a dor encontra-se muito presente, quase sempre associada à ausência dos afectos parentais nas então crianças que cresceram com a realidade de familiares aprisionados ou clandestinos. Tais observações permitem considerar que, quando uma família “é atingida por um evento traumático, como o ocultamento de um dos seus membros, toda a sua constituição é afectada, causando desorganização. O sofrimento causado às famílias viola o tempo. Unidos, presente, passado e futuro fizeram-se e ainda se fazem perceber em casos não resolvidos, numa angústia intransponível”1.

A integração destas crianças em novos núcleos familiares, orfanatos ou até no exílio provocaram experiências muito dolorosas, ainda hoje muito presentes nas suas rememorações. Evidenciam-se também em alguns destes protagonistas os efeitos da vivência clandestina. Configuram um passado com registos marcantes, vazios, provocados pela interdição de uma vida entendida como normal, pela ausência de quotidianos comuns, pelo sofrimento de silêncios prolongados, pelo desconhecimento e desconexão com as ocorrências no mundo, pela mudança abrupta de casa e de local a que as fugas à PIDE obrigavam. As representações no decorrer dos relatos revestiram-se de enorme dramaticidade, transmitindo a sensação de que o seu narrador remontava ao acontecimento que descreve no momento. Estudos laboratoriais e estudos autobiográficos revelaram que “os acontecimentos emocionais negativos são bem recordados, quer no que se refere ao acontecimento emocional em si, quer mais especificamente ao tema central do acontecimento”.2 Foi também o caso quando a abordagem se focou nas vivências na prisão com as progenitoras. O espaço da cela do aprisionamento e os objectos nela existentes, as rotinas, as condições de sobrevivência, estão muito presentes nas representações dos entrevistados que experienciaram esta condição. De uma forma geral, as memórias individuais focaram-se na triangulação interdependente – a desestruturação familiar com as consequentes dificuldades financeiras, a ausência de afectos e os traumas daí resultantes. Todavia, estas memórias individuais entrelaçam-se com a memória grupal numa analogia de factualidades, onde é visível que os pormenores conjunturais que sustentam cada um dos depoimentos recriam uma trajectória colectiva.

Num exercício de análise do conteúdo recolhido nas entrevistas, e especificamente quando se procurou identificar os traumas resultantes destas trajectórias de vida, pudemos observar a predominância de palavras-chave como “Mãe” e “Pai”, remetendo para as figuras nucleares da família que, por efeito da repressão, foram aprisionadas, provocando uma separação que causou traumas profundos nestas crianças. “A casa” é a representação do espaço familiar que se desmorona com o aprisionamento dos familiares. “Peniche” evoca as visitas à prisão e “gaivotas” evocam as emoções vividas aquando das visitas a Peniche. O “medo” resultante da experienciação destes acontecimentos repercute-se em consequências muito profundas nestas crianças, reveladas aliás através de “pesadelos”. Com efeito, “os acontecimentos traumáticos são aqueles que, pela sua intensidade, geram no sujeito uma incapacidade de responder, provocando transtornos diversos no seu funcionamento social”,3 características que aliás são assumidas pelos próprios, que consideram que este passado conturbado moldou profundamente a sua personalidade.

Nas entrevistas, vemos surgir espontaneamente – se não incontrolavelmente – uma catadupa de emoções; “o seu efeito, de maior ou menor intensidade corresponde às experiências vividas e às condições vitais de cada sujeito, das defesas em jogo e da sua maneira única e contingente de dar sentido ao acontecido, sem que medeie um determinismo neste sentido.”4

Quando se trata a memória como objecto de estudo, a relação entre memória e História produz outro sentido, especialmente quando se incorpora a dimensão da emoção.3 E é nesta perspectiva que a construção das sociedades deve considerar a memória da sua dor.5


Marianela Valverde, Investigadora integrada do HTC-História, Territórios e Comunidades, Polo na NOVA FCSH do Centro de Ecologia Funcional – Ciência para as Pessoas e o Planeta.


Referências

1 FUSTITONI, Chiara Ferreira; CANIATO, Ângela - O luto dos familiares desaparecidos na Ditadura Militar e os movimentos de testemunho. “Psicologia USP”, Vol. 30, (2019), e180131. p. 3.

2 PINTO, Amâncio da Costa - O Impacto das emoções na memória: alguns temas em análise. “Psicologia, Educação e Cultura”, Vol. II, n.º 2 (1998), p. 215-240. p. 4.

3 JELIN, Elizabeth - “Las luchas políticas por la memoria”. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, Siglo Veintiuno de Argentina Editores, 2002, p. 68.

4 KAUFMAN, Susana Griselda - “Sobre Violência Social, Trauma e Memória”. In Seminário: Memória Colectiva e Repressão. Montevideo, (1998), SSRC, (Social Science Research Council). p. 4.

5 DOBLES OROPEZA, Ignácio - “Memórias del Dolor”, Consideraciones acerca de las Comisiones de la Verdad en América Latina”. Guadalajara: Editorial Arlekín, 2009, pp. 15-16.


Nota: O presente artigo segue o Acordo Ortográfico de 1990


Como citar este texto:

Valverde, M. Os impactos da ditadura do Estado Novo nas famílias dos opositores políticos. InfoTRAUMA, 26.

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