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18-12-2023 #14

Judith Browne | Paper aeroplanes | 2019 @Unsplash


Prescrições Literárias

Durante uma pausa para o café do Curso de Formação Avançada “Repensar a máscara com que vivemos: masculinidades, trauma e cuidado”, que decorreu nos dias 30 e 31 de outubro de 2023, na Oficina Municipal do Teatro, em Coimbra, em uma conversa informal com as investigadoras Margarida Figueiredo-Braga, Inês Nascimento Rodrigues e Camila Borges, comentámos sobre o papel da literatura quando pensado na ótica do trauma. Falámos sobre a conscientização das diversas questões ligadas ao trauma e a violência que se dão no texto, no grande poder que a palavra escrita tem de nos transportar a diferentes realidades, ao alargar nossas conceções e transformar o modo como a emergência da consciência sobre quem somos e como nos sentimos acontece.

A convergência entre terapia e literatura nos últimos anos deu origem à biblioterapia, uma estratégia destinada a servir-se do impacto positivo de livros e materiais escritos para abordar uma série de questões emocionais, psicológicas e de saúde mental. Esta abordagem terapêutica subtil baseia-se na crença de que a literatura tem a capacidade de influenciar positivamente as pessoas e de contribuir substancialmente para o bem-estar geral. É preciso relembrar que a conexão da literatura com o bem-estar está presente desde os tempos de Ramsés II, cuja entrada da biblioteca continha a inscrição "A casa de Cura da Alma"1. Embora a biblioterapia tenha sido elogiada pela sua eficácia, é importante reconhecer as suas limitações. É uma ferramenta complementar e de apoio, e não um substituto para o tratamento de saúde mental orientado por pessoal médico e outros especialistas.

A leitura deliberada e metódica de determinados textos com intenção terapêutica está no cerne desta discussão, em que o envolvimento intencional com a literatura como catalisador de recuperação emocional e psicológica vai além da leitura casual e descomprometida do lazer. Poesia, não-ficção, ficção e outros gêneros literários estão todos incluídos na extensa gama de literatura utilizada na biblioterapia. Este paradigma terapêutico reconhece que personagens, ideias e tramas literárias têm um profundo impacto emocional nas pessoas, oferecendo um conjunto de pontos de vista, análises perspicazes, conforto e, mais importantemente, oferecem um espaço mental em que quem lê pode reorganizar/reavaliar/revisitar suas emoções e pensamentos em uma forma mediada. Os textos sugeridos são escolhidos com o intuito de proporcionar vantagens terapêuticas, estimular a introspeção e promover o desenvolvimento pessoal. A biblioterapia pode também ser vista como um método educacional que ajuda as crianças a desenvolver inteligência emocional, empatia e compreensão. Os educadores e as educadoras escolhem criteriosamente quais os títulos a incluir no currículo para encorajar conversas sobre diversidade, emoções e questões sociais. Crê-se que as crianças que se envolvem com a literatura desenvolvem resiliência emocional e capacidade de pensamento crítico, o que estabelece a base para uma boa saúde mental. Considerando o contexto acima discutido, sugiro a seguir alguns títulos que possam ser encarados dentro desta perspetiva:

  • Reúnam-se em Meu Nome de Maya Angelou: Originalmente publicado em 1974 e recentemente traduzido para português pela Antígona, esta autobiografia dá seguimento a Sei porque Canta o Pássaro na Gaiola. Angelou relata a sua experiência enquanto jovem, mãe, e mulher negra numa sociedade profundamente racista e desigual.
  • The Collected Schizophrenias de Esmé Weijun Wang: Um livro intimista e escrito com a imediatez e franqueza de alguém que ainda lida com os efeitos de doenças mentais e crônicas, indo direto ao fundo da questão. A esquizofrenia não é um diagnóstico singular e convergente, e Wang escreve não somente para seus pares que compartilham das "esquizofrenias colecionadas", mas também para aqueles que desejam compreendê-las. Iniciando com a jornada em direção ao seu diagnóstico de transtorno esquizoafetivo, Wang aborda as próprias discordâncias da comunidade médica no que diz respeito a nomenclaturas e procedimentos para diagnosticar aqueles com doenças mentais, para então seguir um percurso que examina as manifestações da esquizofrenia em sua vida.
  • In The Dream House de Carmen Maria Machado: Neste livro de memórias a autora apresenta um relato envolvente e inovador sobre uma relação abusiva entre duas mulheres, além de uma arrojada análise dos mecanismos e representações culturais da violência psicológica. Machado utiliza diferentes tropos literários para descrever as distintas etapas deste relacionamento, explorando um conjunto de géneros literários e cinematográficos para melhor dar conta da experiência do trauma, traçando todo o arco de um relacionamento angustiante com uma companheira carismática, porém instável, a autora tenta compreender como o que aconteceu foi formativo da pessoa em que ela se tornou.

Destaca-se, assim, que a literatura, quando empregada de maneira intencional, pode desempenhar um papel de relevância na recuperação emocional, na reflexão pessoal e no desenvolvimento contínuo. Em combinação com o cuidado terapêutico, a prática da biblioterapia afirma-se como uma ferramenta útil para estimular a resiliência emocional, aprimorando assim a saúde mental e auxiliando na jornada de autodescoberta e cura.

Gonçalo Cholant (Professor Auxiliar Convidado FLUC, Investigador Observatório do Trauma/CES, Investigador do CETAPS)


Como citar este texto:
Cholant, G. (2023, dezembro). Prescrições literárias. InfoTRAUMA, 14.


1Lutz, Cora E., “The Oldest Library Motto: ψγxhσ Iatpeion”, Library Quarterly: Information, Community, Policy 48.1 (1978), 36–39.

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