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10-02-2024 #16

Carlos Eduardo | Abandoned hospital in Príncipe | 2023 @Unplash


A quem servem os pedidos de desculpa?

Algumas notas a propósito do aniversário do Massacre de Batepá

Há quem lhe chame a “era das desculpas”.1 De facto, têm-se multiplicado os pedidos de desculpa públicos por violações contra os direitos humanos e, particularmente na última década, pelos crimes perpetrados em contextos coloniais. No Canadá, em 2008, o governo pediu perdão a ex-alunos de escolas residenciais para indígenas.2 No caso da Alemanha, em 2021, o governo, através do então ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, recorreu pela primeira vez à palavra "genocídio" para descrever o massacre dos Herero e Nama, acordando em financiar em mais de mil milhões de euros o governo da Namíbia.3 No ano anterior, em 2020, o rei Philippe da Bélgica havia expressado o seu "mais profundo pesar" à República Democrática do Congo pelos abusos coloniais cometidos pelo seu país, embora não tivesse chegado a apresentar um pedido de desculpas formal.4 Em dezembro de 2022, o primeiro-ministro neerlandês, Mark Rutte, afirmou que a escravatura deve ser reconhecida como "um crime contra a humanidade". Num discurso que antecedeu as visitas ministeriais às Caraíbas e ao Suriname, Rutte declarou: "Hoje peço desculpa pelas acções passadas do Estado holandês em relação a pessoas escravizadas".5

No contexto nacional, talvez o caso mais impactante tenha sido o do pedido de desculpas de António Costa, primeiro-ministro português, quando, em visita oficial a Moçambique em 2022, poucos meses antes do aniversário do massacre de Wiriamu (1972), afirmou: “Não posso deixar aqui de evocar e de me curvar perante a memória das vítimas do massacre de Wiriamu, acto indesculpável que desonra a nossa História”.6 Foi a primeira vez que, efetivamente, se assistiu a um pedido de desculpas explícito por parte de uma figura de Estado cimeira em Portugal.7 Poucos meses depois, Marcelo Rebelo de Sousa seguir-lhe-ia o exemplo, apesar de os termos em que o fez terem sido menos inequívocos.8 Em 2023, um outro momento central de desculpas públicas viria a suceder, agora na cerimónia do 49º aniversário do 25 de abril. Numa sessão no Parlamento, em presença de Lula da Silva, chefe de Estado brasileiro, Marcelo Rebelo de Sousa intervém com palavras particularmente simbólicas: "Não é apenas pedir desculpa - devida, sem dúvida - por aquilo que fizemos, porque pedir desculpa é às vezes o que há de mais fácil, pede-se desculpa, vira-se as costas, e está cumprida a função. Não, é o assumir a responsabilidade para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado".9

Vem isto a propósito de, no passado dia 3 de fevereiro, se ter assinalado 71 anos sobre os acontecimentos de 1953 em São Tomé e Príncipe, quando centenas de santomenses foram mortos por colonos mobilizados pelo governador Carlos de Sousa Gorgulho, num evento que ficou conhecido como “Massacre de Batepá”.10 E vem ainda a propósito dos pedidos de desculpas a esse respeito que, em visitas de Estado ao arquipélago em 2018 e 2023 respetivamente, foram proferidos por Marcelo Rebelo de Sousa e João Gomes Cravinho. Na verdade, creio que não poderemos chamar-lhes rigorosamente “pedidos de desculpas”, na medida em que não houve lugar à evocação dessa palavra ou de outra de cariz semelhante. Houve, sim, um importante reconhecimento público desse evento e da responsabilidade histórica de Portugal no seu desenrolar. Marcelo Rebelo de Sousa expressou uma mensagem de reconciliação ao depositar uma coroa de flores em Fernão Dias, um dos locais onde mais santomenses perderam a vida em 1953, afirmando que: “Portugal assume a sua história naquilo que tem de bom e de mau e assume, nomeadamente e de forma especial neste instante e neste memorial, aquilo que foi o sacrifício da vida e o desrespeito da dignidade de pessoas e comunidades (...). Assume essa responsabilidade olhando para o passado, mas ao mesmo tempo para o presente e o futuro”.11 Subsequentemente, em 2023, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, também na cerimónia em homenagem aos mártires e heróis de 1953, reiterou este lado “sombrio” da história colonial portuguesa, de que Batepá é exemplo, declarando na ocasião: “Aquilo que nós hoje temos, um regime democrático há quase 50 anos, é também fruto daqueles que lutaram e morreram pela liberdade em Batepá e em outras partes das antigas colónias”.12

Mas, 71 anos depois, serão estes gestos – e estas palavras – suficientes? Alguns autores e autoras consideram que os pedidos de desculpa (mais ou menos explícitos) podem, por si só, ser insuficientes se não forem acompanhados por um conjunto de medidas tangíveis que efetivamente procurem reparar o sofrimento passado e lidar com as heranças da violência colonial.13 Outros sugerem que, muitas vezes, essas declarações podem ser percebidas como meros gestos simbólicos, mais motivados por fatores como a pressão internacional, a política interna e considerações diplomáticas do que propriamente com esforços concretos de reparação.14 O impacto e a natureza dos pedidos de desculpa dependem ainda significativamente da sua intencionalidade (sincera, estratégica, etc.) e do modo como as comunidades os interpretam – se os encaram como um encerramento do assunto ou como uma oportunidade para impulsionar mais ações e demandas por reparação.

Há algumas práticas que, todavia, poderiam ser implementadas em conjunto com os pedidos de desculpas para mitigar estes efeitos e potenciar os seus impactos. Desde logo, envolver diretamente as comunidades a quem se dirige o pedido, que deverão ter uma participação ativa na definição dos termos em que são implementados os processos de reparação, incluindo na alocação de recursos. Depois, por exemplo, incluir programas educativos que, nos currículos escolares portugueses ou noutros âmbitos, apresentassem criticamente a história do passado colonial, incluindo acontecimentos históricos como o massacre de Batepá. A implementação de iniciativas económicas que beneficiem diretamente as comunidades afetadas por injustiças históricas é outra medida relevante, nomeadamente através do apoio aos sobreviventes de 1953 (que vivem com uma pensão atribuída pelo Estado santomense de pouco mais de 2.500 dobras, cerca de 100 euros) ou através da promoção de iniciativas de preservação cultural, incluindo a revitalização de línguas, costumes e tradições que foram desconsiderados durante o colonialismo português nas ilhas. Estas medidas, desenhadas com a escuta ativa das pessoas, poderiam ser uma forma de romper com as lógicas paternalistas da “cooperação”, comummente determinadas do topo para a base. Por fim, estabelecer serviços de saúde mental e de apoio psicossocial para ajudar os indivíduos e as comunidades a lidar com os efeitos psicológicos duradouros do trauma histórico, particularmente relevantes num arquipélago como São Tomé e Príncipe, que se constituiu de modo central enquanto economia colonial de plantação marcada por regimes de trabalho e dominação particularmente violentos e lesivos da dignidade dos sujeitos colonizados.

Estes exemplos – que não são, naturalmente, definitivos e estão sujeitos a limitações e potenciais controvérsias – procuram ilustrar a pertinência de uma abordagem multifacetada às reparações, reconhecendo que é necessária uma estratégia abrangente que reflita não só as questões complexas e entrelaçadas que decorrem de injustiças e atrocidades históricas perpetradas no quadro do colonialismo, mas também que se constituam de facto como catalisadoras de mudança e reconciliação. Para esse efeito, parece-me indispensável que as comunidades afetadas sejam tomadas como sujeito e não apenas objeto dos pedidos de desculpa, participando de forma colaborativa na reflexão e identificação dos moldes pelos quais se deve procurar proceder à reparação. Os pedidos de desculpas não chegam e há ainda um longo e complexo caminho a percorrer tanto em Portugal como noutros países europeus, mas havendo vontade política e políticas da memória adequadas, que passem das palavras às ações e destas às reparações, os pedidos de desculpas podem configurar-se como um primeiro passo para outro(s) futuro(s).


Inês Nascimento Rodrigues (Investigadora CES, Vice-coordenadora do Observatório do Trauma)


Como citar este texto:
Rodrigues, I. (2024, fevereiro). A quem servem os pedidos de desculpa? Algumas notas a propósito do aniversário do Massacre de Batepá. InfoTRAUMA, 16.



1E.g. Roy L. Brooks (1999), When Sorry Isn’t Enough: The Controversy Over Apologies and Reparations for Human Injustice. Nova Iorque: New York University Press e Mark Gibney, Rhoda E. Howard-Hassmann, Jean-Marc Coicaud e Niklaus Steiner (eds.) (2008), The Age of Apology: Facing Up to the Past. Filadélfia, PA: University of Pennsylvania Press.
2Ver texto completo.
3https://www.reuters.com/world/africa/germany-officially-calls-colonial-era-killings-namibia-genocide-2021-05-28/. Ver, ainda, Henning Melber (2022), “Germany and reparations: the reconciliation agreement with Namibia”,The Round Table, 111(4): 475-488.
4https://www.publico.pt/2020/06/30/mundo/noticia/rei-belgica-pede-desculpa-actos-violencia-brutalidade-congo-1922456.
5https://www.bbc.com/news/world-europe-63993283.
6https://www.publico.pt/2022/09/02/politica/noticia/primeiroministro-portugues-pede-desculpa-mocambique-massacre-wiriamu-2019244.
7Augusto Santos Silva, Presidente da Assembleia da República, também o faria, através de uma mensagem publicada na rede social Twitter (atual X) em 16 de dezembro, nos 50 anos de Wiriamu. Aí afirma a importância de se pedir perdão pelas cerca de 400 vítimas civis do massacre. Para um estudo exaustivo sobre as políticas de memória e de silêncio relativas ao passado colonial português ver Miguel Cardina, O Atrito da Memória. Colonialismo, Guerra e Descolonização no Portugal Contemporâneo (Lisboa: Tinta-da-China, 2023).
8Cf.https://www.presidencia.pt/atualidade/toda-a-atualidade/2022/12/e-tempo-de-assumirmos-wiriyamu/.
9https://cnnportugal.iol.pt/colonialismo/passado-colonial/marcelo-pediu-desculpas-pela-colonizacao-portugal-esta-a-assumir-a-sua-historia-imperial-e-violencias-associadas-ou-o-presidente-deixou-se-levar-na-onda/20230428/644aa659d34ef47b87534cd6.
10Sobre estes acontecimentos ver, entre outros, Gerhard Seibert (2002), “The February 1953 Massacre in São Tomé: Crack in the Salazarist Image of Multiracial Harmony and Impetus for Nationalist Demands for Independence,” Portuguese Studies Review, 10(2): 53-80 e Inês Nascimento Rodrigues (2018), Espectros de Batepá. Memórias e narrativas do «Massacre de 1953» em São Tomé e Príncipe. Porto: Afrontamento.
11https://www.publico.pt/2018/02/21/politica/noticia/portugal-assume-a-responsabilidade-pelo-massacre-de-batepa-1803953.
12https://visao.pt/atualidade/mundo/2023-02-11-massacre-de-batepa-em-sao-tome-e-um-dos-momentos-mais-sombrios-da-historia-colonial-portuguesa-mne/.
13E.g. Melissa Nobles (2008), The Politics of Official Apologies. Nova Iorque: Cambridge University Press.
14Por exemplo: Jennifer Lind (2008) Sorry States: Apologies in International Politics. Ithaca, NY: Cornell University Press e Mihaela Mihai e Mathias Thaler (eds.) (2014), On the Uses and Abuses of Political Apologies. Basingstoke: Palgrave MacMillan.



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