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26-11-2024 #24

Sem título, 2012. Técnica Mista s/ papel fabriano. 50 x 30 cm. Rita Pereira Marques



Crianças e Jovens Estrangeiros Não Acompanhados em Portugal: do acolhimento à integração pelas Aldeias de Crianças SOS Portugal


São consideradas Crianças e Jovens Estrangeiros Não Acompanhados (C/JENA) todas as pessoas com menos de 18 anos de idade que não estão ao cuidado de um adulto que, por costume ou por lei, deveria ter sido responsável por fazê-lo, ou aquelas que foram separadas de ambos os pais (UNHCR, 1997).

Os C/JENA constituem um grupo diversificado e vulnerável em que a idade, o género, a sexualidade, a classe social, a religião, assim como experiências passadas potencialmente traumáticas e situações da vida presente se cruzam (Godziak, 2016). Isto significa que alguns jovens podem dispor de recursos internos mais ou menos fortalecidos no que toca à gestão emocional e à capacidade de gerir as suas vidas num novo país, exigindo intervenções que considerem estas diferenças. Importante sublinhar que, tendencialmente, se associa as C/JENA ao trauma quer vivido no país de origem, quer no seu percurso migratório. No entanto, sabe-se que eventos potencialmente traumáticos nem sempre correspondem a um trauma psíquico. Associar frequentemente o trauma aos C/JENA pode levar à sua patologização, subestimando os seus recursos e capacidades, nomeadamente de resiliência.

Roberto e Moleiro (2020) identificam três fases na experiência de C/JENA em Portugal: saída do país de origem, percurso migratório e chegada. A partida é motivada pela pobreza, pela escassez de oportunidades educacionais e de emprego, e pela insegurança pessoal resultante de conflitos armados ou étnicos/familiares. O percurso migratório, geralmente mediado por terceiros, é descrito como fonte de risco, marcado por violência e abusos. Os jovens trazem expectativas, mas geralmente sem um plano estruturado, sendo o destino final muitas vezes decidido por circunstâncias e contextos vividos durante a migração.

O acolhimento de C/JENA em Portugal implica, no âmbito da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) e para cada um/a, quer a aplicação da medida judicial de promoção e proteção mais adequada, quer a nomeação de curador provisório para efeitos de proteção internacional, nos termos da Lei de Concessão de Asilo ou Proteção Subsidiária.

A resposta inicial ao acolhimento de C/JENA foi organizada em duas fases. Primeiramente, criaram-se Casas de Acolhimento Especializadas (CAE), com medidas de acolhimento temporário e foco terapêutico, para apoiar e proteger as crianças e jovens de forma individualizada. Em seguida, surgiram os Apartamentos de Autonomização (AA) e a Autonomia Supervisionada (AS), facilitando a transição para a vida adulta. Estas medidas visam a continuidade do cuidado, proporcionando aos jovens as competências de autonomia necessárias para sua integração plena e segura na sociedade.

As Aldeias de Crianças SOS, organização internacional presente em 138 países com programas de cuidados alternativos, fortalecimento familiar, saúde, educação e emergência, constituíram as respostas de Autonomia Supervisionada e os Apartamentos de Autonomização, equipas especializadas na resposta a jovens e C/JENA que chegam a Portugal no âmbito do Programa Europeu de Recolocação e/ou através de Movimentos Migratórios Não Programados, sendo acolhidos ao abrigo do Sistema de Promoção e Proteção e sob Proteção Internacional.

Estas equipas sustentam a intervenção na avaliação diagnóstica inicial e na conceção e execução dos planos individuais, revistos periodicamente com a participação ativa de cada jovem, visando responder às necessidades identificadas e promover a sua autonomia plena.

O modelo terapêutico implementado e a intervenção levada a cabo pelas Aldeias de Crianças SOS privilegia o caráter relacional, reparador e terapêutico. Defende, por isso, a especialização das equipas no olhar sensível ao trauma e às suas manifestações, a compreensão e funcionamento intrapsíquico de cada jovem, atenção detalhada e intencional nas transições contribuindo para a integração da história de vida de cada um. Tal só é possível através do estabelecimento de uma relação de confiança e de proximidade construída com base em cinco “ingredientes” essenciais: relação, segurança, transparência, participação e autoria (Barton, Gonzalez, & Tomlinson, 2012). A relação é o ponto de partida, em que o vínculo entre o profissional e o/a jovem é fomentado com respeito pelo Outro, empatia e compreensão. A segurança é garantida tanto física quanto emocionalmente, criando um ambiente em que o/a jovem se sinta visto, protegido e acolhido. A transparência envolve a clareza e honestidade nas interações, permitindo que o/a jovem entenda o processo, os recursos e as limitações internas e externas, e as expectativas envolvidas. A participação é essencial ao desenvolvimento do/a jovem e promove-se incentivando/a a ser parte ativa na tomada das suas próprias decisões. Por fim, a autoria reforça o poder e a responsabilidade do/a jovem sobre o seu próprio percurso, ajudando-o/a a ser o/a autor/a da sua própria história, da integração da sua vida e da transformação. Estes ingredientes, interligados, formam uma base de um cuidado atento ao trauma, e promotor da resiliência e crescimento pessoal de cada jovem.

O acolhimento e integração de C/JENA enfrenta desafios e limitações que precisam ser abordadas para garantir a sua eficácia a longo prazo. A definição e implementação de uma estratégia nacional devidamente concertada e alinhada com as necessidades e especificidades destas crianças e jovens é fundamental para a prossecução do que se requer como uma intervenção de qualidade, segura e reparadora no acolhimento e integração de C/JENA.

É importante, assim, destacar a necessidade de recursos adequados quer no tocante a equipas técnicas especializadas, instalações, medidas adequadas, quer no relativo ao financiamento. As necessidades e experiências destes C/JENA podem variar amplamente e as respostas precisam de ser suficientemente flexíveis para acolher essas diferenças; a sustentabilidade a longo prazo das próprias respostas e equipas é, por vezes, uma limitação e promotora de insegurança; a capacitação contínua de profissionais através de formação especializada e de supervisão externa é fulcral embora, muitas vezes, subfinanciada e negligenciada. A criação de sistemas eficazes de acompanhamento e avaliação é também essencial para medir o impacto das intervenções e adaptar as estratégias e melhorar continuamente a qualidade da intervenção posta em prática.

Por fim, outra limitação encontrada é a falta de estudos aplicados ao contexto nacional, correndo-se o risco de não captar todas as nuances e variáveis contextuais das intervenções com C/JENA. A heterogeneidade destas crianças e jovens e dos contextos de acolhimento desafia a generalização dos resultados, reforçando a necessidade de mais estudos empíricos que sistematizem e aprofundem as práticas implementadas.


Joana Pereira Lobo, Coordenadora Nacional Autonomia e Integração nas Aldeias de Crianças SOS


Referências:


Barton, S., Gonzalez, R., & Tomlinson, P. (2012). Therapeutic Residential Child Care for Children and Young People: An Attachment and Trauma-Informed Model for Practice. London: Jessica Kingsley.

Goździak, E. (2016). Trafficked children and youth in the United States: Reimagining survivors. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press.

Roberto, S., & Moleiro, C. (2020). De menor a maior: Acolhimento e autonomia de vida em menores não acompanhados. Lisboa: Alto Comissariado para as Migrações.

UNHCR (1997). Guidelines on Policies and Procedures in dealing with Unaccompanied Children Seeking Asylum.


Como citar este texto:


Lobo, J. Crianças e Jovens Estrangeiros Não Acompanhados em Portugal: do acolhimento à integração pelas Aldeias de Crianças SOS Portugal. InfoTRAUMA, 24.



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