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25-10-2023 #12

Josep Martins | Grey Backgrounds | 2020 (@Unsplash)


Declinações do trauma

No panorama epistemológico contemporâneo não são poucos os conceitos a que tem vindo a chamar-se migratórios, isto é, conceitos que, nascidos num determinado campo disciplinar, encontram aplicação e se tornam largamente operativos noutros campos, por vezes distantes. O conceito de trauma pertence indubitavelmente a esse número: desde a área da medicina clínica, em que se mantém muito próximo da origem etimológica grega, significando ferida ou lesão, passando, naturalmente, pela psicologia e pela psiquiatria, até aos estudos de cultura e aos estudos literários, é notória e virtualmente inabarcável a proliferação dos usos do conceito. A produtividade desses usos é incontestável, não apenas do ponto de vista do alargamento do campo do conhecimento, mas também do ponto de vista da possibilidade que conferem de fazer emergir uma consciência mais nítida de percursos de sofrimento que o uso do conceito pode arrancar à invisibilidade ou a uma condição difusa a que o acto de nomear põe termo, abrindo a possibilidade da produção de um futuro pós-traumático.

A outra face da medalha é, naturalmente, o risco de banalização que a generalização dos usos sempre acarreta. Um risco bem visível quando a palavra “trauma” ou conceitos do mesmo campo semântico, como o de “vítima” ou de “sobrevivente” são usados de forma indiferenciada, perdendo todo o rigor analítico. Na verdade, por exemplo, como tem vindo a ser estudado por diferentes autores, o uso instrumental da condição de vítima tornou-se um traço frequente de contextos contemporâneos e é bem visível em muitas situações em que essa condição é reivindicada, por vezes, sem legitimidade, outras vezes, não tendo em consideração qualquer noção de escala.1 Tanto mais necessário se torna opor à banalização ou instrumentalização dos conceitos uma perspectiva analítica diferenciada, atenta às posições e aos contextos específicos.

Deste ponto de vista, dois elementos de reflexão sobre o conceito de trauma tornam-se fundamentais. Por um lado, a exigência da contextualização do conceito. Afinal, há uma grande diferença entre ter vivido anos em Auschwitz ou ter sobrevivido a um terramoto ou um acidente de trânsito. Universalizar a palavra “vítima” ou “sobrevivente”, válida indiferenciadamente para o/a sobrevivente de Auschwitz ou, por exemplo, para uma situação de assédio sexual ou uma relação tóxica não contribui para fazer justiça à especificidade do sofrimento vivido em cada situação. Por outro lado, a reflexão sobre o conceito de trauma, tem vindo a tornar claro que a origem do trauma não tem que ser um acontecimento isolado, ele pode também resultar de uma situação prolongada de vulnerabilidade permanente e de exposição extrema a uma violência absoluta.

Este segundo aspecto, combinado com a exigência de contextualização, é de trágica actualidade. Com efeito, tem-se visto repetidamente escrito que Israelitas e Palestinianos têm em comum o facto de as respectivas identidades se basearem em memórias traumáticas. Em sentido genérico, é uma asserção verdadeira. Mas é também uma asserção que esbate diferenças fundamentais que, no caso vertente, se articulam em torno de relações de poder e de violência de tipo colonial. Ser vítima da violência indiscriminada do Hamas, uma violência, de resto, análoga àquela de que têm sido vítimas muitos palestinianos opositores dessa organização, produzirá, seguramente, efeitos traumáticos e deixará sequelas, muitas vezes, permanentes. Mas a simples vida na faixa de Gaza, ou seja, numa prisão, ou num gueto, a céu aberto, é já em si mesma uma situação potencialmente traumática. A violência extrema sofrida por uma população sujeita agora a formas inumanas de punição colectiva vem apenas potenciar e agudizar a um limite brutalmente insuportável uma situação de violência estrutural prolongada no tempo e sem fim à vista. Imaginar a configuração que poderá ter a memória traumática das gerações − essas, sim, sobreviventes − que emergirem do inferno em que vivem actualmente excede os limites do pensamento. Existirá futuro além deste trauma? Sem dúvida que sim − mas que futuro?


António Sousa Ribeiro, Professor catedrático aposentado FLUC e Investigador do CES


Como citar este texto:
Ribeiro, A. S. (2023, outubro). Declinações do trauma. InfoTRAUMA, 12.


1 Cf., por exemplo: Fassin, Didier; Rechtman, Richard (orgs.) (2007), L’Empire du traumatisme. Enquete sur la condition de victime. Paris: Flammarion; Gatti, Gabriel (org.) (2017), Un mundo de víctimas. Barcelona: Anthropos.

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