Retrato de Amílcar Cabral, por Vhils | Achada Grande Frente, cidade da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde | fotografia: Miguel Cardina
Amílcar Cabral: Uma memória disputada nos 50 anos da independência de Cabo Verde
Ao longo das décadas, a memória de Amílcar Cabral em Cabo Verde tem sido objeto de disputas e resignificações. No arquipélago, ele é visto ora como ícone de inspiração e unidade, ora como figura controversa, especialmente entre setores que questionam o legado político do PAIGC/CV (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde/Partido Africano da Independência de Cabo Verde). Se essas vozes críticas – com proximidade, na sua maioria, ao MpD (Movimento para a Democracia), o partido que venceu as primeiras eleições multipartidárias, em 1991 – contestam a centralidade de Cabral, apontando-o como símbolo moral dos excessos cometidos no período monopartidário, nos últimos anos têm também surgido reapropriações da sua figura por movimentos culturais e juvenis. Inspirando reflexões sobre identidade, memória e justiça social, Cabral surge evocado no rap, na arte urbana e em manifestações como a Marxa Kabral, que ocorre anualmente na cidade da Praia, no dia 20 de janeiro (data do seu assassinato, Dia dos Heróis Nacionais), reunindo jovens que utilizam a sua memória como instrumento de crítica política.1
O centenário do nascimento de Amílcar Cabral, celebrado em setembro do ano passado, reacendeu estes debates. Desde logo, com o protesto encabeçado pela liderança do grupo parlamentar do MpD, que fez um pedido de demissão coletiva em oposição à decisão do governo cabo-verdiano de emitir um selo comemorativo em homenagem a Cabral. Este gesto insere-se numa abordagem mais ampla que questiona a centralidade da sua figura no imaginário colectivo e nos símbolos do Estado, argumentando que Cabral teria inclinações autoritárias manifestadas durante a luta e depois perpetuadas no pós-independência de Cabo Verde via partido único. Apesar de controvérsias pontuais como esta, que evidenciam o desconforto que a sua memória ainda provoca em alguns sectores, o anti-cabralismo permanece uma corrente minoritária, sem grande influência no país como um todo e, de certo modo, em contraciclo à sua consensual exaltação internacional. Efetivamente, ao longo de 2024, a memória do líder anticolonial foi celebrada, pelo mundo fora, em mais de uma centena de atividades de cariz político, social e cultural (agregadas em 100amilcar.com, uma plataforma dinamizada por um grupo de cabo-verdianos e descendentes de cabo-verdianos residentes no arquipélago e na diáspora). Uma delas aconteceu em Lisboa: na capital portuguesa, realizou-se em setembro a primeira Marxa Kabral na diáspora, uma iniciativa do movimento negro em Portugal. A manifestação, sob a égide de Cabral, juntou vários coletivos e largas centenas de pessoas contra o fascismo, o racismo e a xenofobia.
Cabral é uma figura histórica que se consolidou como uma referência global. Apesar das ocasionais guerras de memória que suscita, nos 50 anos da independência de Cabo Verde a figura de Amílcar Cabral permanece central para compreender os desafios e as potencialidades do país. A sua memória, viva e em constante resignificação, não é apenas um testemunho do passado, mas também um convite para imaginar futuros mais justos e igualitários.2
Inês Nascimento Rodrigues e Miguel Cardina, investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Referências
1 Sobre esta manifestação, ver a curta-metragem Marxa Kabral realizada por Diana Andringa no âmbito do projeto CROME (www.crome.ces.uc.pt), sediado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
2 Para uma análise aprofundada de alguns destes tópicos ver Miguel Cardina e Inês Nascimento Rodrigues (2023), O Dispositivo Mnemónico. Uma história da memória da luta de libertação em Cabo Verde. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
Como citar este texto:
Cardina, M.; Rodrigues, I. N. Amílcar Cabral: Uma memória disputada nos 50 anos da independência de Cabo Verde. InfoTRAUMA, 27.
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