Miko Guziuk | Kos, Greece | 2018 @Unsplash
Intervenção psicológica em comunidades multiculturais
Saúde mental e riscos no trabalho humanitário
A intervenção psicológica em comunidades multiculturais obriga o profissional de saúde mental a sair da sua zona de conforto, promovendo espírito criativo, de liberdade na escolha das melhores soluções, com e na comunidade, para que possa potenciar uma intervenção viável e efetiva. Não é desejável que esses profissionais se coloquem num patamar de excessiva exigência, uma vez que, estarão a dificultar o exercício e a efetividade das suas intervenções, bem como, a exporem-se a situações de complexa resolução, o que poderá conduzi-los a uma posição de vulnerabilidade. A intervenção comunitária só resulta se a comunidade for envolvida desde o início, aquando da avaliação das necessidades. Entra-se, assim, no desafio sobre como proceder no “terreno”, junto da comunidade, sobre como deve “saber-se ser e estar” – dado que vai exigir uma reflexão não julgadora, de aceitação pelas partes envolvidas, implicando um equilíbrio que, por vezes, pode ser débil e difícil.
“One size doesn’t fit all”
Os fluxos migratórios, acontecendo frequentemente por necessidade económica, também podem ser motivados por uma luta pela sobrevivência, sobretudo em Estados que perseguem movimentos sociais diferenciados, seja no domínio da cultura, da política, da religião, da orientação sexual, seja no relativo ao estilo de vida pelo qual se opta. A intervenção psicossocial tem de se ajustar e moldar para conseguir ter sucesso perante a realidade que se vai apresentando, uma vez que não há intervenções padrão que respondam igualmente a todos. “One size fits all” não é, de todo, uma característica desta intervenção, e muito menos quando se trabalha em e com comunidades multiculturais. A realidade é mais intensa em ambientes instáveis, como os de comunidades de pessoas refugiadas. Por seu turno, é transversal o olhar de cuidado lançado sobre as crianças; são seres socialmente mais ágeis e o ajustamento vai contribuir para o seu desenvolvimento e bem-estar; contudo, a vida delas é condicionada pela presença próxima de um adulto equilibrado e calmo. A perda ou a separação de um cuidador, formal ou informal, pode ter efeitos muito negativos sobre a criança. Estando sós, tornam-se mais vulneráveis a situações de negligência, fome, risco de exploração sexual, sendo alvos fáceis e mais suscetíveis para recrutamento militar. Os menores desacompanhados, ou sem proteção parental, estão dependentes de ajuda externa que zele pelo cumprimento dos direitos humanos e são casos prioritários no acesso a todos os cuidados quando chegam ao primeiro país seguro. Pode afirmar-se que, em situações de crise, as crianças são mais vulneráveis do que os adultos. Dado o elevado nível de stress no meio ambiente que pode afetá-las diretamente, tendo de lutar pela sobrevivência; ausência de estruturas de proteção social para elas vocacionadas, ao longo do percurso migratório; assiste-se ao aumento do risco continuado de abuso e exploração sexual como forma de a criança, ou o/a jovem, obter recursos para a sua subsistência; é de sublinhar que, a degradação, rejeição e o terror das crianças é mais comum em situações pós-desastre. A separação dos cuidadores pode causar vários tipos de perdas, trazendo fragilidades, como: reações negativas e sentimentos de grande intensidade; insegurança gerada pelo desconhecimento acerca do destino ou paradeiro dos pais, sendo que a idade em que acontece a separação origina sinais/reações diferentes nas crianças/jovens.
Autocuidado do profissional
Emergências sociais, guerra, instabilidade económica e civil, desastres naturais como inundações, furacões e secas, trazem enormes consequências para as comunidades multiculturais. Todos os parceiros que surgem nas situações em que é requerida ajuda, obrigam a que os profissionais se ajustem às circunstâncias que a nova realidade exige. Quem lida de perto com migrantes tem de possuir perceção adequada e ajustada sobre os limites do seu apoio. Os técnicos que estão na primeira linha, têm de interiorizar que serão mais as vezes em que terão de ajudar as pessoas a viver na incerteza, do que aquelas em que serão parte ativa na resolução das situações com que se confrontam – não, seguramente, por falta de profissionalismo, mas por toda a conjuntura em que se vive. Promover a autorregulação emocional e ajudar a relativizar a angústia de lidar permanentemente com o desconhecido são missões básicas de ajuda na promoção da intervenção psicológica com comunidades multiculturais. A intervenção psicológica nessas comunidades exige flexibilidade e perspicácia para que o apoio seja precoce. Tanto no reconhecimento e identificação da situação como "perda ambígua"; como na normalização dos níveis de stress, confusão e sensação de desesperança; como ainda, na criação de oportunidades para que as famílias falem abertamente e sem juízos pré-concebidos sobre a pessoa desaparecida, a orientação sexual, ou o estilo de vida alternativo, dependendo do motivo que levou à intervenção. Os programas de resiliência desenvolvidos em contexto de intervenção psicológica minimizam níveis críticos de desigualdade, promovem bem-estar, tal como capacidade de crescimento dentro dos diferentes momentos de desafio que são colocados aos públicos mais vulneráveis. Reportando, somente, a populações migrantes e refugiadas, uma das questões relacionadas com a resiliência, a ser trabalhada quotidianamente, prende-se com os diferentes lutos migratórios. Se estes vários fechos de processo de perda e luto tiverem sucesso, haverá capacidade de autoanálise crítica; sendo que a resiliência contribui para a integração e a disponibilidade para encarar novos desafios que estas populações trazem consigo. A resiliência pode ser uma competência decorrente da experiência a trabalhar com profundidade, de modo a tornar-se numa estratégia saudável para lidar com as dificuldades, proporcionando significativos contributos para a autonomização das pessoas. Cada vez mais, o técnico tem de ser elemento facilitador da conciliação dos processos de equilíbrio débil e potenciais impactos desestruturantes, tanto no plano individual, como social – no próprio e no dos outros. A intervenção deve ser neutra e flexível, no modo como orienta tempo e espaços terapêuticos. Há maior respeito que se espera seja aceite e cumprido, desde a intervenção psicológica em crise, à intervenção sociocomunitária ou ao contexto terapêutico. É “calçar os sapatos do outro, mas com as minhas meias” (Ana Isabel Cambraia, dixit, 2015). Mesmo não vislumbrando “porquês” adjacentes às queixas que o beneficiário traz, só há um comportamento a ter: aceitação com respeito pela diferença. Há situações que são entendidas se houver vivência das mesmas e, ainda assim, a atuação de cada um decorre de modo diferente, mesmo perante estímulos iguais. Em momentos distintos no tempo, é na aceitação da multiculturalidade que está a chave para uma intervenção limpa e clara (“clean & light”), eficaz e eficiente. A multiculturalidade é um conceito que existe pela natureza do que nos distingue. Encerra em si um olhar crítico devido à “bolha” onde se vive para a rotular; “bolha” que mais serve para estigmatizar e promover a não aceitação. Motivos pelos quais, a missão do técnico passa por “rebentar a bolha” que se julga protetora e contribuir para a abordagem inclusiva, frontal, sobre bem-estar e saúde mental. Esperam-se barreiras derrubadas e narrativas questionadas com mente aberta, aceitação no olhar e gestos de respeito para expressar verbal ou comportamentalmente – para que a autoproteção do técnico se mantenha como prioridade, de modo a conseguir fazer um melhor trabalho com e na vulnerabilidade humana.
Susana Gouveia (Cruz Vermelha Portuguesa, Observatório do Trauma/CES)
Referências e leituras recomendadas
Brito, B. A. D., Arriaga, M. T. D., & Gouveia, S. M. Manual de Apoio Psicossocial a Migrantes. Lisboa. (2015). Broken Links, Psychosocial support for people separated from family members, International Federation of RC/RC. Psychosocial Centre. (2014). Handbook for Emergencies. United Nations High Commissioner for Refugees. Third Edition. Geneve. (2007). Inter-Agency Standing Committee (IASC). IASC Guidelines on Mental Healthand Psychosocial Support in Emergencies – Basic Principles. (2008). Manual de Apoio Psicossocial a Migrantes. APAV, DGS e Cruz Vermelha Portuguesa. Lisboa. (2015). Psychological first aid: guide for field workers. World health Organization (2011). The road to Resilience – Bridging relief and development for a moresustainable future. Geneve. (2012). Community-based Protection & Mental Health & Psychosocial support. Division of International Protection, United Nations High Commissioner for Refugees. Geneva.
Como citar este texto: Gouveia, S. 2024. Intervenção psicológica em comunidades multiculturais. InfoTRAUMA, 22.
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