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Tirana, eu?
As novas tiranias parecem não ter rosto. Nem nome. Nem sequer maldade. Existem para nos proteger. Pior: para nos dar prazer. Talvez por isso nunca tenham sido tão silenciosas. Falamos de tecnologia. Ou melhor: do uso que lhe está a ser dado.
Há quatro palavras definidoras do tempo que vivemos em termos de poder: digital; dados; concentração (monopólio) e atenção.
A sociedade digital levou a que os dados se tornassem o petróleo do novo século. O valor que esses dados passaram a ter atraíram a cobiça e consequente concentração de riquezas incalculáveis nas mãos de um número ínfimo de homens. Tudo isso só é possível captando a nossa atenção.
Isto é, o produto agora somos nós.
Soa estranho. É estranho. Mas para muito poucos – ainda.
Comecemos pela economia digital. Quem for dono de dados interessantes, chama a atenção das pessoas. Quem tiver a atenção das pessoas, obtém mais dados, mais dinheiro e mais poder. Quem controlar os dados, a atenção e o dinheiro, governa.
Na sua génese, a definição de tirano significa a usurpação do poder por um indivíduo. Mas este é um tempo global. Já não falamos de um país, mas de todo o globo. Porém, mesmo recorrendo ao pensamento político de Hannah Arendt, anterior à globalização, é fácil aplicar a ideia de tirania ao atual uso da tecnologia. Para Arendt, totalitarismo não era sinónimo de um Estado todo-poderoso, mas da erosão da diferença entre público e privado. A liberdade a partir do controlo do que as pessoas sabem sobre nós. Neste pressuposto, poderá alguém ser livre no tempo das redes sociais?
A soberania digital tem vindo a concentrar-se nas mãos de empresas tão grandes quanto os Estados (Kerdellant, 2025; Williams, 2021; Han, 2021). Seis multimilionários norte-americanos – Elon Musk (X e Tesla), Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Facebook), Bill Gates (Microsoft), Sergey Brin e Larry Page (Google) acumulam uma riqueza pessoal de cerca de 150 mil milhões de dólares. Tais fortunas permitem-lhes «substituir os Estados», algo sem precedente na história da democracia (Kerdellant, 2025, p. 9).
A título de exemplo, recorde-se que há apenas seis países (EUA, China, Reino Unido, Índia, Japão e Alemanha) com um Produto Interno Bruto (PIB) superior ao valor de uma única empresa, a Apple.
Para manter o poder, as grandes tecnológicas eliminam a concorrência, acumulando mais informação, mais riqueza e mais controlo sobre os cidadãos – utilizadores, no linguajar atual, troca semântica digna de estudo só por si. Foi o caso de Zuckerberg: quando o número de seguidores do Facebook começou a diminuir, comprou os concorrentes, como o Instagram e o WhatsApp (Kerdellant, 2025).
Além de engolirem ou matarem a concorrência, açambarcaram também o negócio da informação, sem qualquer compensação para os meios de comunicação ou jornalistas (Williams, 2021; Kerdellant, 2025), baseando-se em serviços gratuitos, cujo retorno é o facto de cada consumidor se tornar numa fonte de informação, sem sequer ter consciência disso. Só a Google e o Facebook representam 85% do crescimento anual da publicidade na Internet (Williams, 2021).
Não se trata aqui de diabolizar a riqueza, apenas de analisar o poder inédito que significa nas mãos de tão poucos – e numa dimensão inimaginável antes da economia digital e global. Também não se trata de analisar a moral dos gastos com iates e viagens ao espaço. Trata-se de olhar para os factos referidos acima, e juntar-lhes um outro – a acumulação verificar-se em empresas tecnológicas – para vermos o tema como um problema de concentração de poder, e não apenas de riqueza.
Porque um tal monopólio tecnológico tem a capacidade de engolir o poder político, sendo o Brexit apenas um exemplo (Brändle et al., 2021), mas também a defesa, a educação e a saúde.
Eventos recentes, como a entrada de Elon Musk na Casa Branca, mostram uma promiscuidade sem precedentes entre poder económico, político e tecnológico. Figuras como Musk tentam incorporar o poder absoluto controlando ao mesmo tempo a grande tecnologia, a economia e a política.
Embora o aforismo «o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente» se tenha tornado senso comum no que diz respeito à política, não se tem aplicado ao facto de o domínio tecnológico absoluto constituir uma ameaça existencial à democracia. Com o poder a deslocar-se dos parlamentos e ministérios para o digital: «Aqueles que controlam as tecnologias controlarão cada vez mais todos os outros» (Susskind, 2018, p. 3).
Se nos dissessem de um político que pretendia um poder absoluto, provavelmente a reação seria protestar. Porque não protestamos, então, contra o poder absoluto das tecnológicas?
Porque não as vemos (ainda) como instituições de poder. Porque nem sequer nos imaginamos como seus súbditos. São tão amigas. Existem para nos facilitar a vida. Fazer tudo mais rápido e melhor. Estarmos em todo o lado sem sair de casa. Socializar sem fazer amigos. Namorar sem passar pelo risco de rejeição.
E de forma grátis.
Como alerta o filósofo Byung-Chul Han (2021, p. 40), o poder smart não funciona com mandamentos e proibições. Faz de nós dependentes e viciados. «Em vez de quebrar a nossa vontade, satisfaz as nossas necessidades. Quer agradar-nos. É permissivo e não repressivo» (Han, 2021, p. 41).
Tornamo-nos, assim, prisioneiros – voluntários – de plataformas como o Facebook, o TikTok, o Instagram ou o Google. Prisioneiros de uma força dominante que nunca foi tão completa. Porque o domínio coincide com a própria liberdade (Han, 2021).
Mas nada disto faria sentido sem um último ingrediente: a atenção. Não só porque se tornou a chave para o lucro, mas também porque, não sendo possível estar atento ao tsunami de informações que nos engole diariamente, passamos, paradoxalmente, a estar mais distraídos do que verdadeiramente importa. Uma espécie de distração como sistema (Williams, 2021; Han, 2021), criadora de sobrecarga cognitiva e de adormecimento crítico.
A distração epistémica desumaniza. Com ela, vem a tempestade perfeita para impulsos básicos, como o ódio, raiz dos populismos.
Explorar as fraquezas cognitivas dos seres humanos. «Foi assim que se inaugurou o século XXI: com uma aliança entre as formas mais sofisticadas de tecnologia e persuasão ao serviço dos nossos esforços mais pueris para estabelecer as suas bases no campo da persuasão» (Williams, 2021, p. 47).
O ódio, a polarização e a provocação de emoções fortes negativas alimentam o algoritmo. «As redes sociais exploram as fraquezas psicológicas dos utilizadores e tornam-nos dependentes, dando-lhes pequenas injeções de dopamina, o neurotransmissor responsável pelos vícios» (Kerdellant, 2025, p. 69).
Para quê investir na verdade se a mensagem mais lucrativa é a mais eficiente –– partilhável, viral, monetizável – não a que se baseia em factos?
Enquanto o jornalismo – balizado por um Código Deontológico, ao contrário de todo o desregulado mundo digital – sofre a maior crise de sempre, a palavra facto caiu em desuso. Parece um capricho. Uma ideia tola, até. No entanto, continua a ser o que nos pode salvar de qualquer tirania. Porque, «abandonar os factos é abandonar a liberdade», diz-nos Snyder (2017). «Se nada é verdade, então ninguém pode criticar o poder, porque não há base para o fazer. Se nada é verdade, então tudo é espetáculo. A carteira mais recheada paga pelas luzes mais ofuscantes» (Snyder, 2017, p. 65).
Sem factos, não há realidade. E sem realidade, não há resistência. Só entorpecimento: «Submetemo-nos à tirania quando renunciamos à diferença entre aquilo que queremos ouvir e aquilo que é a realidade» (Snyder, 2017, p. 66).
Para que resistir volte a ser possível, talvez a primeira barreira a quebrar seja a ideia feita de que a política está em distantes torres de marfim. «A vida é política, não porque o mundo se importe como as pessoas se sentem, mas porque o mundo reage ao que as pessoas fazem. Cada pequena escolha é em si mesma uma espécie de voto» (Snyder, 2017, p. 33).
E o seu voto para onde vai?
Para combater uma tirania é preciso identificá-la. A de hoje está em todas as vidas, em todos os cliques.
Isabel Nery, Jornalista e Investigadora
Referências
Brändle, V. K., Galpin, C., & Trenz, H. J. (2021). Brexit as ‘politics of division’: social media campaigning after the referendum. Social Movement Studies, 21(1–2), 234–253. https://doi.org/10.1080/14742837.2021.1928484
Fry, R. (2019). Nature or Nurture: A Crisis of Trust and Reason in the Digital Age, Foreword. London: Albany Associates.
Han, Byung-Chul (2021). No-Cosas. Uruguai: Taurus.
Kerdellant, Christine (2025). Mais Poderosos do que os Estados. Lisboa: Edições 70.
Snyder, T. (2017). On Tyranny – Twenty Lessons from the Twentieth Century. New York: Crown.
Susskind, J. (2018). Future Politics – Living Together in a World Transformed by Tech, Oxford University.
Williams, J. (2021). Clics Contra la humanidad – Libertad y Resistencia en la Era de la Distracción tecnológica. Barcelona: Gatopardo Ediciones.
Como citar este texto:
Nery, I. Tirana, eu?. InfoTRAUMA, 31.
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