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30-04-2024 #18

Ficha prisional José Lamego | 1974

Tortura e trauma: um testemunho

Pese embora a natureza selectiva e institucionalizada da violência política exercida pelo regime derrubado em 25 de Abril de 1974, o recurso à tortura como método de investigação por parte da polícia política foi uma constante. O relato que aqui deixo não tem qualquer pretensão analítica ou historiográfica: é, tão somente, um testemunho pessoal sobre essa realidade, vivenciada por mim em três detenções para interrogatório (1972, 1973 e 1974) - a última não chegou, felizmente, a perfazer o período habitual de 90 dias, pois fui libertado pela Revolução de 25 de Abril.

O método de tortura mais usado pela Pide/DGS era a privação de sono, normalmente acompanhada por espancamentos. Ao 3°/4° dia, sobretudo nas horas que antecediam o nascer do sol, o preso começava a sofrer alucinações de carácter visual. Sempre que caía adormecido, o preso era acordado com abanões, gritos e água na cara. Por duas vezes, um cigarro aceso foi-me encostado levemente à mão esquerda. Acontecia também passarem a chama de um isqueiro à frente dos olhos para me manter acordado - a privação do sono acrescer grandemente a sensibilidade visual à luz.

Quer o preso estivesse de pé ou sentado, ao fim de 3 or 4 dias os tornozelos e os pés começavam a apresentar uma dilatação considerável, em virtude da força de gravidade que afectava a circulação sanguínea: a planta dos pés perdia a sua concavidade e a pele dos pés tornava-se extremamente sensível.

A privação do sono era uma tortura bastante sofisticada, não apresentando o preso dois dias após o termo da sessão de tortura sinais exteriores visíveis. Era permitida uma visita semanal por parte de familiares, com duração de cerca de 30 minutos. No caso das sessões de tortura se prolongarem por mais de uma semana, a visita era cancelada.

Em termos pessoais, passei em Maio/Junho de 1973 (aquando da minha segunda prisão) por duas sessões de tortura do sono - 6 + 7 dias, com com intervalo de 2 dias - e Fevereiro/Março de 1974 (por ocasião da minha terceira prisão) por 3 sessões (16+3+ 2 dias). A partir de 16 de Março (data do chamado "Golpe das Caldas"), não fui submetido a mais nenhuma sessão de tortura.

À altura havia uma grande relutância em reconhecer os efeitos psicológicos traumáticos da tortura policial: era um sinal de fraqueza perante o inimigo. Mas era inevitável que existissem. No meu caso, manifestaram-se, sobretudo, por perturbações do sono: devia evitar situações de cansaço extremo, que, paradoxalmente, me impediam de adormecer; uma grande disciplina e regularidade (que ainda hoje observo!) em matéria de períodos de sono foram sempre o melhor antídoto. Recordo-me que estas perturbações se manifestaram, sobretudo, ao longo de 1974 e 1975, tendo depois praticamente desaparecido. Durante mais tempo, porém (talvez mais de 20 anos), velas acesas à mesa causavam-me stress e falta de ar. Também isso, felizmente, desapareceu, engolido pelo tempo.

Os ex-presos políticos só muito raramente relatam na primeira pessoa estas suas experiências. Cinquenta anos depois, agora que a ampulheta do tempo caiu há muito sobre os factos e começa, inexoravelmente, a cair sobre a última geração que os vivenciou, deixo aqui este breve testemunho pessoal, esperando que ele possa ser de algum interesse para aqueles que, de um ponto de vista medico e científico, pretendam analisar os impactos na saúde física e mental causados pelos métodos de tortura utilizados pela polícia política da ditadura.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2024

José Lamego (Professor catedrático jubilado da Faculdade de Direito de Lisboa)


Como citar este texto:
Lamego, J. (2024). Tortura e trauma: um testemunho. InfoTRAUMA, 17.


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