A desinstitucionalização dos doentes mentais

A doença mental constituiu desde sempre um desafio à capacidade de as sociedades integrarem e cuidarem dos seus portadores. Actualmente as instituições consagram inequivocamente um princípio de integração dos doentes mentais e rodeiam estes de um conjunto de normas e garantias destinadas a assegurar não só a sua integração, como também uma provisão pública de cuidados de saúde adequados à sua situação. Ao longo de todo o séc. XIX e durante a primeira metade do séc. XX consolidou-se um modelo de cuidados em instituições hospitalares especializadas - os hospitais psiquiátricos - baseado tanto em considerações técnico-científicas (tratamento do doente), como em considerações de ordem humanitária (pôr cobro à carcerização ou ao abandono de um grande número de pessoas com doença mental). A crítica à institucionalização psiquiátrica veio mais tarde. Nos anos 60, as instituições psiquiátricas bem como a própria psiquiatria passam por um aceso debate cuja componente mais radical denuncia o carácter repressivo das instituições e da disciplina (Goffman, Foucault), o seu papel político de controlo do desvio social (Szasz), a falência total dos procedimentos terapêuticos (Wing e Brown) e o corte radical do doente relativamente ao seu meio social de origem (Goffman). Perante tais críticas, começa a falar-se de cuidados alternativos à hospitalização, de “serviços de saúde mental” em que o hospital é apenas um elemento entre outros (clínicas, hospitais de dia, clubes de doentes, unidades extra-hospitalares de pós-cura), de programas educacionais e profissionais para (re)integração social dos doentes. Portugal tem um processo de desinstitucionalização sui generis que convém estudar e avaliar nos seus efeitos. A Lei de Saúde Mental de 1998 consagra que a prestação de cuidados é promovida prioritariamente ao nível da comunidade e que os serviços locais constituem a base do sistema nacional de saúde mental. A verdade é que não foram criados serviços locais de saúde mental, as unidades de reabilitação são escassas, as respostas sócio-ocupacionais e residenciais muito insuficientes e também não se conhecem projectos para esta área. Os efeitos para os doentes e suas famílias de um processo errático de desinstitucionalização merecem ser estudados. O presente estudo toma esta última questão como seu objecto central de estudo e interroga-se sobre o impacto da desinstitucionalização na vida dos doentes em Portugal, sobre as relações entre as instituições da saúde e os cidadãos portadores de doença mental, sobre o papel das famílias e das redes sociais no cuidado dos doentes, sobre a articulação entre cuidados formais e informais de saúde mental. Interessa a este estudo traçar a evolução das políticas de desinstitucionalização ou tão só de saúde mental, identificando os seus pressupostos e resultados e avaliando a capacidade de resposta das famílias perante a deficiência dos cuidados públicos. O estudo será desenvolvido a partir de uma instituição hospitalar – o Hospital Psiquiátrico Sobral Cid em Coimbra – e envolverá uma análise intensiva das relações entre a instituição e os doentes, suas famílias e meio de origem. A estratégia metodológica a seguir inclui uma primeira fase de conhecimento da instituição, da sua acção e das mudanças ocorridas no sentido de dar corpo à filosofia da desinstitucionalização, usando a observação, a análise documental e a entrevista como técnicas predominantes. Numa segunda fase, serão sinalizados alguns doentes (cerca de 20) com estatutos diferentes relativamente à institucionalização (institucionalizados, novos doentes, doentes em ambulatório, etc.) e estudadas as relações que estabelecem com a instituição hospitalar e com os serviços de saúde locais, com outros prestadores de cuidados institucionais ou informais. Em bola de neve, estes doentes conduzirão ao estudo dos agregados familiares a que pertençam, das redes sociais em que estejam envolvidos, das autoridades locais das comunidades de origem e dos profissionais de saúde a que estejam referenciados para reconstituição dos padrões de cuidados que os protegem. Prevê-se que cada doente possa dar lugar a cerca de cinco entrevistas em média. Em paralelo, o estudo vai inquirir policy makers, responsáveis por serviços de saúde mental, profissionais de saúde mental e dirigentes de associações de doentes sobre a sua percepção acerca do processo de desinstitucionalização em Portugal, sobre os efeitos positivos e negativos das mudanças e sobre as melhorias a introduzir para prevenir a produção de efeitos negativos. O estudo pretende consolidar uma parceria com o NUCEM (Núcleo de Cidadania, Exclusão e Processos de Mudança da Universidade Federal de Pernambuco) que está a desenvolver uma pesquisa de carácter semelhante, de modo a estabelecer comparações entre as políticas e cuidados de saúde mental nos dois países.