Quotidianos
A Guerra
pai
escrevo esta de miragens exausto
de perpendiculares dias habitado
de sedes insolentes
perseguido
pai creio devagar
que as densas coisas minhas recordadas
estão longe e ficam cada vez
mais longe em tão rebelde tão pesada
tão árdua resignação
do peito pai
irrompe este mole desperdiçar
da respiração
estrangulada nesta farda (neste arame)
em que nos debatemos filhos tantos
de como tu
pai diverso repetido
pai
limpo a espingarda para um tiro mais puro
mais mortal
semeio ferro obrigado a acreditar
que é paz o que disperso
nos ventos e nas almas
caminho vestido pai de espesso mato
têxtil
a um lado e outro farejo instruído
sinais de presença contenciosa
dos que a terra possuem e não a querem dar
pai o sargento ralhou muito
ralhou tanto o intrépido sargento
pai diz à terra
que voltando a amarei de insensato
e fundo amor ferido
pai escreve
claro largo fresco breve
dá saudades à mãe sem lhe contar
recebe
um abraço deste teu
(guerreiro) filho
Cabral, A. M. Pires (1974), Algures a Nordeste. Catálogo de Feios, Simples e Humildes. Macedo de Cavaleiros: Edição de Autor, pp. 40-41.
A angústia
num rasgo apoteótico e puro
condena-me à morte.
Resignadamente
escrevo o poema do sangue
na tábua da ausência.
Pego serenamente no revólver do silêncio
e com poesia nas mãos
abro o ventre dos deuses.
Avivo o azul-cinza no meu cérebro exaltado.
Numa distância sem tempo
musas cantam a misericórdia dos astros.
E o gesto…
Não passa dum gesto.
Morre na espuma do medo.
Absinto
Meus poemas de até ontem
vividos e revividos
mergulhados e perdidos
em ecos de solidão
Meus poemas de há bocado
viver custa “estar-ausente”
como dor que ainda se sente
além dos dedos da mão
Meus poemas de mais longe
como farrapos ao vento
do meu descontentamento
de vir a ser o que são
Meus poemas sem palavras
de cada coisa que sinto
labaredas de absinto
sobre a minha escuridão.
Guiné, 1967
Ramalho, Carlos (1984), Sentinela, ano III, nº 4, Maio, p. 4.
Anuncia-te a lua cabeça de toiro
crescente deitado como nós crescemos
Anuncia-te o vento outra vez diferente
com cheiros ao ventre da terra queimada
As novas estrelas são o teu sinal
túnica tecida pra te ver guardada
quanto te apareceres em ti e de ti
pois a madrugada vem de madrugada
Não há quem te veja não há quem te queira
só a minha boca só os meus ouvidos
só a cor do sul só a cor do norte
que nos ata a coroa que nos ata a morte
Rebeijo desejo alumio as mãos
enfio a cabeça pela noite toda
Regressa regressa gota mel e pão
não há louco sítio que por ti não espere
onde te não saiba onde não te caiba
Achado no mato, passa um Avião.
Tamen, Pedro (2001), Retábulo das matérias: poesia 1956-2001, Lisboa: Gótica, p 254.
Diuturnitas Externi Mali
De sorte que se acendiam na mata
as lâmpadas de bolso dos guerrilheiros
estando eu sentado numa pedra, a
do referido local, com uma espécie
de cão tristeza enrolado aos pés,
e a noite: o rumor das estrelas
caindo a prumo na vegetação,
enquanto dos lados de Muxaluando
uma brisa aponta aos lábios secos
e morre devagar
pela garganta abaixo.
Pacheco, Fernando Assis (1996), A musa irregular. Porto: Edições Asa (2ª ed.), p. 43.
Memória II
E à tarde
Os soldados voltavam
Traziam feridas
E balas e menos
Traziam memórias
De sonhos traídos
Traziam fadigas
De corpos caídos
Nos sacos e rostos
Traziam o regresso
Traziam memórias
Soldados sem armas
Voltavam em transe
Não eram os mesmos
Geraldo, Manuel (1973), 10 Farpas no Medo. Lisboa: Edições Plexo, pp. 27-28.
Salinas
Junto ao mar, uma sentinela
a arma apontou
na mira do sal – era de madrugada,
em Ambriz.
Sabido o disfarce, deixou
de fazer vigias,
recolheu à cela.
Este soldado tinha,
já nesse tempo,
a noção exacta da fraternidade,
do amor.
E em guerra, isso
é um crime – diz-se.
Martins, Eusébio Cardoso (1978), Corpo de Delito. Coimbra: Centelha, p. 57.
Mina
Caminhada lenta
vagarosa.
Passos inseguros
duros!
- Como duros e inseguros
são os passos
que antecedem a morte!
Caminhada longa
que,
com o estrondo,
se fez breve.
Mas mais longa ainda
e mais penosa.
…
E o fumo
O sangue
Os ossos
pedaços
destroços
E os gritos
Os urros
Os gemidos
de jovens escravos
vencidos!
E o cheiro acre da pólvora!
E uma raiva que nasce
Um ódio que se acende
Uma guerra que se justifica:
- Matar para não morrer!
…
E lá longe
Num dito “jardim à beira-mar plantado”
Uma besta que ri
Que delira contente
Bebendo sequiosa
O sangue fresco
Dum corpo jovem
Inocente!
Calvinho, António (1999), Trinta facadas de raiva. Lisboa: ADFA, pp. 37-38.
Eu sei mãe
Eu sei mãe
que tens os olhos abertos até aqui
nem dormes
e os braços estendidos até ao meu regresso
nem descansas.
Eu sei mãe
que na tua cabeça aqui
as noites são mais escuras
há manhãs em que eu morro e tu enlouqueces
dias em que a guerra nunca acaba
e o chão está coberto de cadáveres.
Eu sei mãe
que andas comigo numa guerra ainda mais difícil
só queres que seja o que me salve
herói cobarde assassino
só queres essa coisa enorme
de tornar a ser teu filho.
Aparte
Porque os aerogramas são amarelos
perguntas ao carteiro se traz sol para ti.
Rodrigues, Alberto Martins (1976), O Nosso Amor não se Prende a Olhos nem a Cabelos:de Angola à Reforma Agrária passando por antigamente: Poemas. S.L.: Edição Movimento de Intervenção Cultural – MIC, p. 15.
Dia-a-dia
Morríamos todos os dias ao acordar.
Mira, Júlio (2006), Éramos todos bons rapazes, Lisboa: Indícios de oiro, p. 72.