O Dever da Guerra
Escrito no Sangue
Para os meus sobrinhos Mió e Eugénio
Foste, às praias doutrora, ver partir uma nave?
Vai vê-la regressar, fremente, aos aeroportos.
Tem, agora, o perfil triunfal de uma ave,
Mas nas entranhas traz cinco séculos mortos!
Deixou, no além-mar, um farrapo de pragas,
A memória do ódio, o turbilhão das fugas.
Traz, oculto, a sangrar por vinte e cinco chagas,
Um pavilhão de medo e envergonhadas rugas.
Esperava-a o pó, os fétidos detritos,
O crime da indiferença e a fome das crianças.
Antes tudo acabar numa explosão de gritos
Do que este tropeçar no gume das vinganças!
Foste, às praias doutrora, ver partir um navio?
Vai vê-lo regressar, sem glória, aos aeroportos.
Antes fosse vazio e viesse vazio.
Mas nas entranhas traz cinco séculos mortos!
21 de Novembro de 1976
Viana, António Manuel Couto (2004), 60 anos de poesia, vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, p. 402.
As palavras exactas e poupadas
“São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Nove meses de esperança, lua a lua.
Grandes barcos os levam, lentamente…”
Natércia Freire
(Liberta em Pedra, 1964)
Conheço-os:
recortados no dia claro
seu andar pausado e as palavras
exactas e poupadas.
Palavras de sonhos e de esperanças
de coragens e medos
de estranhas alianças
e segredos
nascidos nas picadas, nas matas, nãos abrigos,
onde há caminhos antigos
que a geografia não ensina.
Nos seus olhos há terra e mar,
estrelas, ventos, madrugadas,
amor, desesperança e alegria,
onde nada principia
nem termina.
De que longes vieram?
que sóis ou que soidades
os rostos lhes queimaram
que perigos lhes deram
o saber imenso destas verdades?
Conheço-os. Como quem
Igualmente dobrou
O Cabo da Boa Esperança
e traz consigo no sangue
(e na lembrança)
os longes por onde andou.
Camaradas de luta e de Ideal
que como nós ergueram quais
navegadores de antanho
com humildades e sal
marcos do seu tamanho.
Sentinelas leais que nos renderam
em torreões e abrigos
em matas e picadas
eu sei em que perigos beberam
as palavras fecundas e poupadas.
E aquela força de quem
tem lâminas de sol nas mãos
e nos olhos e nos braços
a dimensão dos espaços.
Não lhes pergunto, pois, donde vieram
ou em que longes beberam
a estranha sabedoria.
Nossas mães portuguesas nos geraram
com dor e alegria.
Grandes barcos nos levaram, lentamente…
E voltámos depois
no claro dia.
Melgaço, Castro de, Combatente, nº. 153, ano XIV, Nov 1984
Nova Caipemba, Setembro de Mil Novecentos e Sessenta e Um
I
Vou entrar em combate, peço
ao céu que me torne merecedor
da morte, se vier. Se transformem
em tons de aurora os raios de sol-pôr.
Por cada gesto eu me torne digno
dos poucos anos que tenho por cumprir,
intensamente, Deus, me realize
num gesto por esculpir.
Quando se morre jovem morre juventude
tem-se a idade dos confins de além
ganham-se estradas para além do tempo
que nunca se tem.
II
De novo regressamos à aventura
de descobrir em nós rumos antigos,
de novo a alvorada tem o ritmo
de cânticos guerreiros despertados.
Alerta, os olhos fitos na paisagem
avançamos... Como o comando
fosse ditado pelo sangue dos avós.
Que força essa que nos faz partir?!
Que força essa vai dentro de nós?!
Veiga, João Conde da (1968), Plenilúnio, Lisboa: Panorama, p. 137.
A Palavra Guiné
III
O verde crescendo
em sua esperança,
a barca buscando
o mar mais propício,
a terra mais suave,
no silêncio das grandes noites
antigas, a antiguidade
do mar, uma viola
a crescer no verso.
Ou o coração que esta mão
acompanha, canção
que os grandes dias
vão buscar à claridade.
Guerra verde, Guiné verde,
e o poema mordendo a terra.
Figueiredo, José Valle de (1970), Poemavra. Lisboa: Editorial Verbo, p. 99.
O Siroco
Deu-me Deus sua força por que eu faça
Com alma inteira a guerra!
Soprou depois um vento de desgraça...
Mas eu, sem me esquecer, sinto a alma baça
Ao beijar minha Terra!
Pôs-me as mãos sobre os ombros e sagrou-me,
Deixou-me o seu olhar;
E o sonho de outro sonho despertou-me
Porque o ouvi chamar pelo meu nome
Na hora de lutar!...
E eu Vou, a "raiva e a luz" renascerá
Em nossa face calma.
Nunca a derrota nos derrubará!
Não sei ao certo ainda o que virá...
Em tudo o que vier, minha Alma está.
adaptação livre do poema "D. Fernando" da "Mensagem" de Fernando Pessoa
Durão, Roberto, Mamasume - Revista da Associação de Comandos, 2ª série, nº 63, Ag/Dez de 2005