Morte

 
 
 
Guerra ou Lisboa 72
 
Partiu vivo jovem forte
Voltou bem grave e calado
Com morte no passaporte
 
Sua morte nos jornais
Surgiu em letra pequena
É preciso que o país
Tenha a consciência serena
 
Andresen, Sophia de Mello Breyner, O nome das coisas, Edições Salamandra, 1977, 2ª. Edição, p. 14.
 
 
 
 
12.3.72 – 20. (Relatório de Contas)
 
Vi morrer muita gente: Albrecht Dürer o comerciante
notários escrivães senhoras idosas cochichando ainda
Vi os mortos amortalhados de brancura na goma dos lençóis
e os caixões que os levavam às costas pelas ruas de Ostende
 
Vi quem se desmoronasse devagar, pedra a pedra, apesar do lenço
que lhe premia o queixo. Vi lábios de mármore de infanta
sorrindo nos seus túmulos. Vi a chuva cair sobre as lágrimas e os gestos
vi a escura muralha da noite erguendo-se em torno dos seus corpos.
 
Neste céu de bruma o sol é uma maçã
pálida como um rosto, um braço ainda suspenso.
Um rio sem margens um dique para o mar
Que morre devagar no areal aguado.
 
Vi como os navios morrem, como morrem as casas
como morre a memória, o passado e o futuro,
como o silêncio morre e como, lentamente,
vou morrendo com ele e com a minha vida ao ombro.
 
Vi morrer o Outono e coagular-se o trigo,
vi morrerem as algas, as velas dos moinhos,
Vi o iodo amarela morrer no meu retrato
a irremediável morte do nosso rosto antigo.
 
Vi morrer os animais a sua digna agonia,
vi móveis à deriva e colchões e ascensores
Vi as franjas da morte suspensas sobre a porta
e os seus negros pássaros pousados na janela.
 
A luz da tarde incha na toalha do jantar
e a brancura do pão é uma testa sem dedos:
a fronte donde escorrem os olhos com que a chuva
vem espreitar às vezes a desordem do quarto.
 
Não quero mais partir, não quero mais ficar
ser um eco sem grito uma sombra sem voz.
Quem são estas ruas por onde ninguém passa?
Quem acende no gás a corola da lua?
 
Vi a morte morrer nos chapéus do vestíbulo
escondida nos crepes como a febre nos gânglios.
Há quartos que eu odeio e subúrbios e quintas
e constelações de cães chamando-se na noite.
 
Quem vi morrer me mata, me crava na virilha
o seu punhal de feltro os seus dentes terríveis.
Roça no tecto os pés circula no meu sangue
Entra e sai do escritório e os seus ossos ardem
na lanterna que oscila nas estações desertas.
 
Por isso sou pinheiro, tenho a cor do enxofre
a textura do sono as raízes do frio.
E estou de pé no inverno e ergo-me e caminho
E ocupo as cadeiras com o meu passado ao colo.
 
Ai deixai-me no meio dos bebedores nocturnos
falando de poentes, viagens, solidões.
Tenho um vazio no corpo para encher de crepúsculos
Dessa espuma marinha dessa alegria breve.
Desse riso de vidro que leio nos espelhos
quando no fim do dia me confundo com a noite.
 
Como um boi empalhai-me no limite das sombras
que a curva do teu braço lentamente percorre.
Seja essa a palavra, seja esse o mistério:
um coração batendo debaixo do tapete
um relevo de anca povoada de árvores
o meu rio deslizando na direcção da foz
e o teu pescoço nu como um lírio cortado. 
Antunes, António Lobo, (2005), D'Este Viver Aqui Neste Papel Descripto. Lisboa: Dom Quixote, pp. 374-375.
 
 
 
 
Mata Sanga, 65
 
Espera-me aqui a morte, a incerteza
do sol e das manhãs.
Cristalizam-se os olhos no fumo
longo e pensativo dos cigarros.
Além do arame farpado
dos continentes, deste mar de ódio
que nos trouxe, heróis prematuros
de discursos e banquetes,
há aldeias, campos e cidades
homens de negro vestidos
mulheres sem ventre fecundado
amor traído no aço de espingardas.
 
Aqui o fumo pensativo
o olhar distante e o cansaço
 
Oliveira, César (1969), O Amor e a Guerra, Edição de Autor
 
 
 
 
Poema Décimo
 
Sobre o esquife do soldado morto
 
o dia tomba claro.
 
A mão oculta o rosto
sob a madeixa de cabelo solto
no vento breve.
 
O pai está de pé e tem na face
 
um rápido vestígio luminoso
que o sol deteve.
 
E o povo
se agrupa no silêncio perturbado
todo igual pela morte.
 
Dentro do esquife o soldado repousa.
Há ainda um leve rito em sua boca
na última palavra
e as mãos a cada lado junto à farda
guardam nas unhas pálidas
um testemunho vão de lodo e água
 
Sant’Anna, Glória de (1988), Amaranto: poesia 1951-1983. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, p. 174.
 
 
 
 
Crepúsculo de terras poluidas
e armas enterradas corpos íngremes
que ao silêncio escavado nas palavras
não resistem
 
Crepúsculo de terras e crateras
palavras soterradas corpos hirtos
que o desespero seco do outono
reconhecem
 
Crepúsculo de terras que o progresso
da solidão invade e desconhecem
os corpos   de crateras
 
que guardam armas e sustentam
guerra
nos corpos escavadas e dispersas
 
Cruz, Gastão (1972), As aves - poema, Lisboa: Iniciativas editoriais, 2ª ed, p. 34.
 
 
 
 
No chão caído – ensanguentado.
Sonhos desfeitos – riso suspenso.
Nas mãos abertas havia mais
que o gesto de implorar.
 
Se era esperança,
se era vida,
a morte veio
lenta, furtiva,
abrir as portas
de par em par.
 
Olhos abertos – fitando o céu.
Cabelo loiro – a esvoaçar.
Nunca ninguém saberá que mais havia
além do seu olhar.
 
Silva, João Mattos e (1972), Tempo de Mar Ausente. Lisboa: Editorial Mocidade, p. 34.
    
 
 
 
                                    
É Bom que se Saiba
 
                                  Para o João Manuel Freire da Cruz Dias
 
1
é bom que se saiba: não há muito mais
por que morrer.
vencida está a ferida sugada. o sangue
estoirou os olhos dos homens verdes de vinte
anos. as armas estão marcadas a sulcos
pelos gritos negros
 
- gritos que borraram de vermelho
as florestas violadas.
 
2
é bom que se saiba – há muito mais
por que morrer.
saliente cresce o buraco onde as árvores
não criam raízes.
aí o amor é uma planta
de caule seco.
o sol depois nasce
e os mortos regressam ao seu campo
de batalha.
 
- mortos, marceneiros, gente sorridente
que conhece os caminhos brilhantes
da alegria.
 
3
ninguém sabe e todos esquecemos: nada há
que mereça a morte.
as paredes mal caiadas dos povos
mais tristes
são o punhal do alarme.
as manchas das mãos sem impressões digitais
envergonham as canções
mais simples.
dentro do corpo passeia o espectro preto
do ódio.
as crianças tornam os muros palácios
de pureza. nenhuma metralha se ouve.
            os transeuntes assobiam o mal.
 
- o mal, importado, ganha anúncios na televisão
e os livros desfazem-se nas mesas dos intelectuais:
ninguém mais precisa deles.
 
 
Gonçalves, José António (1996), Tem o Poder da Água: obra poética (1973 – 1995).Ponta Delgada: Editorial Éter, pp. 57-58.
 
 
 
 
Calambata
 
à memória dos nove
 
(como) uma africana manhã inventa a anhara deserta
onde os passos. Do sopro das armas descem
a voz cheia da bazuca em oblíqua vibração
o coice dos morteiros ogiva do silvo na cinzenta
face do medo o cheiro a maresia próxima
 
e (como) a súbita emboscada acontece
entre o Lungadge e a Magina exactamente
às nove horas da manhã africana     e um auto
de corpo de delito se lavra sobre
a anhara então deserta. São nove homens
têm a minha idade     diz-se que deslizam pássaros
autopsiados na véspera da memória.
 
O cacimbo     esta face de areia suspensa:
fitam-me nove pares de olhos como se do chão
uma lâmina entre crateras nas minhas mãos
crescendo rápida.
 
Via-se a anhara ondular     talvez uma bandeira
nos imaginados mamoeiros e na lança dos bambus.
E na franja das mulembas a presença erecta
das cubatas: caçambuleiros velhos de cachimbo
para o norte     as dengosas velhas mulheres
os bois tristes como o rosto verde dos monangambas
e talvez o grito e talvez o grito dos monandengues
ao anunciar das grandes distantes chuvas.
 
O imbondeiro era então a árvore dos tensos braços abertos
para a tarde     a terra uma espécie de sobressalto
a flutuar dentro da guerra     toda a madrugada acordada
na hora veloz da sutura sobre a boca
 
e eis que a manhã desperta das metralhadoras
os ventres os peitos tomados de assalto
o combate é o réptil de repente a corroer os membros
e a face de nove rapazes da minha idade.
 
E Calambata escrita a palavra de nove letras
manhã de nove horas africanas
e o corpo de nove rapazes da minha idade.
 
Melo, João de (1980), Navegação da Terra. Lisboa: Vega, pp. 67-68.
 
 
 
  
O amor sobre o tempo
 
Pensava que te amava: porque
havia raízes secas debruçando-se sobre
o caminho onde a terra acabava e o
desejo nos vencia.
(Ao longe eu via
uma árvore enorme e muitos
miúdos pobres.)
 
Também uma calma e
por detrás de tudo
a guerra.
 
Haveria mortos
Corpos
Sem vida.

Patrão, Graça (2008), Diálogo com o ser: poesia. Coimbra: Minerva, p. 44.