Cancioneiro

 
 
Menina dos Olhos Tristes
 
Menina dos olhos tristes,
O que tanto a faz chorar
O soldadinho não volta
Do outro lado do mar

Senhora dos olhos cansados,
Porque a fatiga o tear
O soldadinho não volta
Do outro lado do mar

Vamos, senhor pensativo
Olhe o cachimbo a apagar
O soldadinho não volta
Do outro lado do mar

Anda bem triste um amigo
Uma carta o fez chorar
O soldadinho não volta
Do outro lado do mar

A lua que é viajante
É que nos pode informar
O soldadinho já volta
Do outro lado do mar

O soldadinho já volta
Está quase mesmo a chegar
Vem numa caixa de pinho
Desta vez o soldadinho
Nunca mais se faz ao mar
 
Ferreira, Serafim (org.) (1975), Resistência Africana, Lisboa: Diabril, p. 111.
In: Luís Cília (1965), Portugal Resiste. Cercle do Disque Socialiste.
Poema também interpretado por Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, entre outros.
http://www.youtube.com/watch?v=KRVNbVeXq0M (versão de Adriano Correia de Oliveira)
 
 
 
 
Ronda do Soldadinho
 
1.
Um e dois e três
Era uma vez
Um soldadinho
De chumbo não era
Como era
O soldadinho
 
Um menino lindo
Que nasceu
Num roseiral
O menino lindo
Não nasceu
P'ra fazer mal
 
Menino cresceu
Já foi à escola
De sacola
Um e dois e três
Já sabe ler
Sabe contar
 
Menino cresceu
Já aprendeu
A trabalhar
Vai gado guardar
Já vai lavrar
E semear
 
2.
Um e dois e três
Era uma vez
Um soldadinho
De chumbo não era
Como era
O soldadinho
 
Menino cresceu
Mas não colheu
De semear
Os senhores da terra
O mandam p'rà guerra
Morrer ou matar
 
Os senhores da guerra
Não matam
Mandam matar
Os senhores da guerra
Não morrem
Mandam morrer
 
A guerra é p'ra quem
Nunca aprendeu
A semear
É p'ra quem só quer
Mandar matar
Para roubar
 
3.
Um e dois e três
Era uma vez
Um soldadinho
De chumbo não era
Como era
O soldadinho
 
Dancemos meninos
A roda
No roseiral
Que os meninos lindos
Não nascem
P'ra fazer mal
 
Soldadinho lindo
Era o rei
Da nossa terra
Fugiu para França
P'ra não ir
Morrer na guerra
 
Soldadinho lindo
Era o rei
Da nossa terra
Fugiu para França
P'ra não ir
Matar na guerra
 
In: José Mário Branco (1969),  A Ronda do Soldadinho, Edição de Autor.
http://www.youtube.com/watch?v=jMJWBFLAEuI (versão de Isabel Silvestre) 
 
 
 
 
O Menino de sua Mãe 
 
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.
 
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
 
Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe.»
 
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
 
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
 
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe
Pessoa, Fernando (2005) Poesia: 1918-1930. Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 254-255.
In: Dário de Barros (s/d), É Urgente mais Flores. Estúdio.
Interpretado também por Luís Cília, entre outros.
 
 
 
 
Canto do desertor
 
Oh mar… oh mar…
Que beijas a terra,
Vai dizer à minha mãe
Que não vou p`rá guerra.
 
Diz, oh mar, à minha mãe,
Que matar não me apraz
No fundo quem vai à guerra
É aquele que a não faz.
 
Vou cantar a Liberdade,
Para a minha Pátria amada,
E para a Mãe negra e triste
Que vive acorrentada.
 
Mas a voz do nosso povo,
No dia do julgamento,
Te dirá a ti, oh mar.
E dirá de vento a vento,
 
Quem são os traidores,
Se é quem nos rouba o pão
Ou se nós os desertores
Que à guerra dizemos «Não».
 
In: Luís Cília (1964), Portugal/ Angola – Chants de Lutte. Le Chant du Monde.
 
  
 
 
 Canção com Lágrimas e Sol
 
Eu canto para ti um mês de giestas
Um mês de morte e crescimento ó meu amigo
Como um cristal partindo-se plangente
No fundo da memória perturbada.

Eu canto para ti um mês onde começa a mágoa
E um coração poisado sobre a tua ausência
Eu canto um mês com lágrimas e sol o grave mês
Em que os mortos amados batem à porta do poema

Porque tu me disseste quem em dera em Lisboa
Quem me dera me Maio depois morreste
Com Lisboa tão longe ó meu irmão tão breve
Que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro

Eu canto para ti Lisboa à tua espera
Teu nome escrito com ternura sobre as águas
E o teu retrato em cada rua onde não passas
Trazendo no sorriso a flor do mês de Maio

Porque tu me disseste quem em dera em Maio
Porque te vi morrer eu canto para ti
Lisboa e o sol Lisboa com lágrimas
Lisboa a tua espera ó meu irmão tão breve
Eu canto para ti Lisboa à tua espera
 
Alegre, Manuel (2008), Nambuangongo, meu amor: os poemas da guerra, Lisboa: Dom Quixote, p. 27.
In: Adriano Correia de Oliveira (1970), Cantaremos. Editora Arnaldo Trindade, Discos Orfeu, faixa 7.
O poema musicado difere do original.
 
 
 
 
 
Caderneta Militar
 
Davam-te a farda
 
E uma espingarda
Davam-te a espada
E uma granada
Mais a tristeza
Para pagares com a morte à Portuguesa
 
Davam-te um saco
Mais um buraco
Para morreres
Sem tu saberes
Qual a razão
Para pagares com a vida a opressão
 
Davam-te o pré
E um pontapé
Davam-te a mina
E uma faxina
Davam-te um tiro
 
E uma medalha
Mais a metralha
Que mata gente
Que sofre e sente
Sem um suspiro
 
Davam-te um preto
E um amuleto
Davam-te o mote
Para o chicote
Davam-te o escravo
Mas só agora é que te deram um cravo
 
Davam-te as botas
Mais as bolotas
Dum rancho pobre
Sabendo a zebre
Davam-te a febre
 
Davam-te Angola
Por carambola
E Moçambique
Por alambique
Punham-te a pique.
 
José Carlos Ary dos Santos, in: Fernando Tordo (1977), Estamos Vivos. TDL.
 
 
 
 
Fotos do fogo
 
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira

A guerra deu na TV
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p’ra mim o cheiro aceso
dos sítios tão remotos
e do corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso

Olha esta foto, eu aqui
era novo e inocente
«às suas ordens, meu tenente!»
E assim me vi no breu do mato
altivo e folgazão
ou para ser mais exacto
saudoso de outro chão
não se vê no retrato

Chega-te a mim […]

Nesta outra foto, é manhã
olha o nosso sorriso
noite acabou sem ser preciso
sair dos sonhos de outras camas
para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas
 
estás são e salvo e logo
«viver é bom», proclamas

Eu nesta, não fiquei bem
estou a olhar para o lado
tinham-me dito: eh soldado!
É dia de incendiar aldeias
baralha e volta a dar
o que tiveres de ideias
e tudo o que arder, queimar!
no fogo assim te estreias

Chega-te a mim […]

Nesta outra foto, não vou
dar descanso aos teus olhos
não se distinguem os detalhes
mas nota o meu olhar, cintila
atrás da cor do sangue
vou seguindo em fila
e atrás da cor do sangue
soldado não vacila

O meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terramotos
costumam desfocar as formas
matamos, chacinamos
violamos, oh, mas
será que não violamos
as ordens e as normas?

Refrão
Chega-te a mim […]

Álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas

Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
quando a recordo
sei que quase logo acordo
a morte dorme parada
nessa morada
 
Godinho, Sérgio (2007), 55 canções: partituras, letras, cifras, Lisboa: Assírio & Alvim, p. 113.
In: Sérgio Godinho (1993), Tinta Permanente. EMI-Valentim de Carvalho.
 
 
 
 
Soldado Conhecido
 
Foi o treino e o trem
Foi o porto e o barco
O desfile, o abraço
O tambor a rufar

Foi o pranto no cais
O pai nosso que fica
Sem jeito p'ra vida
Foi o eco do mar

Foi a marcha, o calor
Foi o peito inchado
Do homem fardado
Foi o seu funeral

Foi a arma na mão
A besta que nos berra
A força da guerra
O avião

Água que seca no nosso cantil
O lábio que greta, a febre a subir
O sangue que ferve cá dentro de nós
O corpo que treme debaixo do sol
O medo da morte, a noite a gritar
Foi aquilo que a gente não pode falar

Foi o estado maior
Foi a messe e o rancho
O mando, o comando
O quartel general

Os abutres e nós
Foi aquilo que fez
O negócio da guerra
E obrigou a matar

O estilhaço, o napalm
A picada no osso
O Ambriz, o Tomboco
Foi São Salvador

Foi a carta que dói
Da mulher que nos foge
E o puto lá longe
Tão longe de nós

A malta, a maca, o negro que cai
O cabaço da preta, o mulato sem pai
O soldado castrado no corpo e na voz
A mina que rebenta por baixo de nós
Foi o preço, é o braço artificial
É aquilo que a gente não pode calar

Foi a guerra colonial!
 
In: Paco Bandeira (1978), Os ferrinhos, o adufe e a guitarra, DECCA.