Cancioneiro Popular
Balada do soldadinho
Era uma vez um soldadinho
que tinha nascido no Minho
Bem longe da sua terra
havia porém uma guerra
Onde sem saber porquê
de repente se encontrou
Não foi por si que partiu
não foi por si que voltou
Água mole em pedra dura
tanto dá até que fura
mas esta grande verdade
depende muito da idade
com que a razão a conhece
e também da condição
que a propaganda enaltece
Não viu selva nem selvagens
nem outras quaisquer imagens
que a bruxa lhe havia contado
e assim foi desterrado
num décimo da sua vida
ouvindo muitas patranhas
disfarçadas de façanhas
semelhantes sobretudo
àquelas que no
entrudo
se ouviam na sua terra
onde nunca houvera guerra
E assim tão desolado
tão distante e deslocado
foi morrendo aos pedaços
aos gritos e aos abraços
aos mosquitos tropicais
Disseram que foi de loucura
por isso com certa amargura
não botaram nos jornais
nem avisaram os pais
Eu penso que não foi loucura
mas talvez muita ternura
pelos mosquitos tropicais
Não sei mesmo se o governo
não devia erguer-lhe um tempo
para apontar o exemplo
da sua bravura heróica
a dizimar os mosquitos
aos abraços e aos gritos
e envolto em glória
devia o seu nome em ouro
ficar gravado na História
ou então nos seus anais
já que escapara aos jornais
Mas nada disso fizeram
E também nada disseram
de modo que só eu sei
o nome daquele moço
que havia nascido no Minho
e de uma qualquer maneira
lá deixara a companheira
a chorar pelo soldadinho
Morreu, de facto, em Bissau
desta maneira prosaica,
no ano da graça de mil novecentos e setenta e três
Não foi por si que partiu
não foi por si que voltouCruzeiro, Celso (1980), Afluentes de Abril. Coimbra: Centelha, pp. 37-39.
A Maria Carmen Botto
Dizes que me acautele ao escrever-te
E que a verdade eu guarde só p’ra mim.
Mas esta vida, aqui, a ser assim,
É a morte a impedir-me de dizer-te
Como se morre a fingir que se é valente
Como se mata a pensar que se é herói.
Mas a cambada daí é o que mais dói
- Filhos da puta! - e diz-se boa gente.
Pedes-me cuidado no que escrevo
E que a verdade eu guarde só p’ra mim.
Guardá-la-ei aqui, escrevendo assim,
À espera das quatro folhas de um trevo
A encontrar na gleba da esperança.
Se alegre o Sol, que a Liberdade em flor,
Ceifando ódio e semeando amor,
Fará da vida sonhos de criança.
E a morte seja, o fim da era
Dessa cambada aí, que é o que mais dói.
- Filhos da puta que o tempo não destrói -
E a Liberdade a nova primavera!
Sá, Sérgio O. (2008), Versos na guerra. Versos de paz. Porto: Edição de Autor, p. 9.
Carta do João
Meus sempre lembrados pais:
Já lhes escrevo da frente
da batalha,
onde, em artes infernais,
tudo se junta e baralha
horrìvelmente.
Esta vida de toupeira
bem podia ser melhor.
O que a salva é o amor
que temos pela Bandeira.
Quando entrámos pelas matas
eu tremia, não de medo,
que sempre fui português,
mas de matar...
com ideias insensatas
de ficar para ali quedo,
sem mirar uma só vez.
Sabem porquê? Magicava
que estes negros do sertão
eram homens como eu,
com amor à serra brava.
Também tinham pais e mães,
e noivas, e coração...
Vai daí, a pontaria
nunca a fazia a va1er.
Até que chegou um dia
vi o António morrer...
O António Afonso, coitado!
Um tiro de canhangulo
cortou-lhe a cabeça rente
deu um berro, deu um pulo
e caiu ensanguentado,
mesmo ali à minha frente.
Uma raiva me tomou!
Uma raiva à gente estranha
que assim mata portugueses.
Miro agora com rancor...
Oh! que desgraça tamanha!
E como sucede, às vezes,
juntar-se o ódio ao amor...
À Tia Amália, um abraço
do filho que vi morrer.
Que não chore… Neste passo
também morrer é vencer.
A morte aqui anda a esmo
e às vezes ceifa os valentes...
Mas vai-se vivendo... Eu mesmo
cá fico bom de saúde,
e sem uma arranhadura,
decerto pela virtude
da imagem da Virgem Pura
que trago sempre ao meu peito.
Só ontem parti dois dentes,
ao saltar uma ladeira.
Talvez que por tal defeito
a Rosinha me não queira
e eu vá cair em desdoiro...
À cautela, não lho diga,
que ela sempre é rapariga...
a não ser que lhe acrescente
que um dia os hei-de pôr de oiro,
como os tem o meu tenente...
Dê-me notícias da terra,
que, lá por andar na guerra,
não a perco da lembrança
e em Deus conservo a esperança
de lá voltar...
Abraços para a famí1ia,
lembranças ao Zé da Emília
e a quem por mim perguntar.
À Rosinha, que hei-de eu dar?
- Todo o amor do coração...
E, por hoje, nada mais...
Deitem-me a bênção meus pais!
Milhões de beijos leais
deste seu filho:
João.
Ventura, Manuel Reis (1964), Soldado que vais à guerra. Braga: Edição de Autor, pp. 99-102.
Mensagem de um associado
Às vezes fico a pensar
Como era antigamente
O tempo por mim passado
E o que virá pela frente.
Tudo por mim tem passado,
Que a outro sou igual
Até nas lutas sem tréguas
Da Guerra Colonial.
Fui soldado de bom senso,
De honra e muita fé
E por ser bom patriota
Fui defender a Guiné.
Dois anos eu lá passei
De amargura e tristeza,
Mas, na minha solidão,
Fui soldado de firmeza.
Pátria querida, sou eu
O teu defensor honrado
Que voltarei para o teu seio
Se por ti eu for chamado.
Quinze anos se passaram
Após a despromoção
Mas eu guardo-te no peito
Pátria do meu coração! Fernandes, José Augusto (1984), Combatente, ano XIV, nº 151, Setembro, p. 1.
Inesgotável coração
Nas agruras do mato
Sob o olhar da morte
o teu retrato, mãe
É que me dava sorte
Era a tua lembrança
Que me dava coragem
E a esperança tinha, mãe
A tua imagem
Quem me salvou a vida
Foi a tua oração
E a batida, mãe
Do teu inesgotável coração
Agora a minha luta
É este dia-a-dia
E é o teu rosto, mãe
Que me alumia
E pecador que sou
Se um dia entrar nos céus
Saudoso dos teus braços
São os teus olhos, mãe
Que hão-de guiar os meus
A dar, na mão de Deus
Os seus primeiros passos.Faria, Rosa Lobato (1999), O Batalhão, edição especial: “13º encontro”, p.16.
“Os rapazes” do meu país
Tinham eles vinte anos
Os amores de tanta gente
Fosse ele um amor qualquer
Havia sempre uma mulher
A chorar constantemente
Tinham eles vinte anos
Os rapazes da minha terra
Com sonhos no peito ardendo
Foram pela Pátria morrendo
Foram mandados para a guerra
Tinham eles vinte anos
Os rapazes do meu País
São homens rindo e chorando
Que o silêncio vão suportando
De uma guerra que ninguém quis!
Têm muito mais que vinte anos
Têm muito mais que desenganos
E ninguém sabe quem eles são
Não sabem quantos estilhaços
Lhes corta a alma em pedaços
E lhes magoa o coração
São eles heróis sem escolta
Numa Pátria a apodrecer
E eu só quero gritar a revolta
Daqueles que nem querem saber
E se este canto é em alta voz
Foi porque deus assim quis
Que jamais nenhum de nós
Esqueça os “rapazes” do meu País
Loureiro, Lurdes (2005/2006), O bate estradas, ano 4, nº 28, Dez./ Jan.
Desversos
1.
Trinta anos depois continuo revoltadíssimo
V.ª Ex.ª foi de uma grande falta de chá
nem eu precisava de Angola – nunca!
nem Angola de mim – o que hoje parece claro
V.ª Ex.ª argumentava nos corredores
que eram ordens do dr. Salazar
ora adeus mandasse-o mas é a ele
tinha bom corpo para apanhar porrada
e mesmo V.ª Ex.ª podia ter feito
uma perninha como eu fiz em Zala
não sou de rancores nem pouco mais ou menos
mas aquela merda estava mal parada
sabe V.ª Ex.ª o pasmo e a aflição
quando se caía em alguma emboscada?
umas vezes olhava pelo rabo do olho
outras fingia de morto e mijava-me
depois voltava-se ao acampamento
para a ternura dos cães e a tarimba rasa
um duche ao ar livre um cigarro infeliz
o gole de cerveja a atirar para o amargo
houve um fim de dia entre todos cinzento
que eu me senti o maior dos miseráveis
funesta ideia – e fui a correr esconder
a arma de serviço por sinal uma Walther
a esta hora já enterraram V.ª Ex.ª
com as competentes honras militares
mas a verdade é sempre para se dizer
trinta anos passados não me esqueço de nada
Lisboa
24/25 - X - 94
Pacheco, Fernando Assis (2003), Respiração assistida. Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 34-35.