Ainda

 

Fotografia de Manuel Botelho, 108.rç-cmb (da série confidencial/desclassificado: ração de combate), 2007-2008.

 
 
Ainda
 
As nossas frases estão cheias de picadas
de minas a explodir nos substantivos
por dentro do silêncio há emboscadas
não sabemos sequer se estamos vivos.
Os helicópteros passam nas imagens
a meio de uma vírgula morre alguém
e os jipes destruídos estão nas margens
do papel onde talvez para ninguém
se vão escrevendo estas mensagens.
 
Alegre, Manuel (2008), Nambuangongo, meu amor: os poemas da guerra. Lisboa:Dom Quixote, p. 54.
 
 
 
 
 
Dito a meu pai em tempo de agonia
 
1
A tua tristeza delicada
o teu cabelo enfim branco
 
as cadeiras onde te sentas
com um jornal no regaço
 
o amor violento a breve zanga
desapontada
 
esse marégrafo no paredão
para medir os meus agravos
 
2
A poesia que por ti
em certas noites soluçava
 
a tua letra já molhada
despedaçando-se na mata
 
a saudade bordada a fio grosso
no camuflado
 
o olhar brando e tudo o que não dizes
e eu feito num oito adivinhava
 
Pacheco, Fernando Assis (1996), A musa irregular, Porto: Edições Asa (2ª ed.), pp. 163-164.