Financeirização do Estado e vulnerabilidades sociais
Ana Cordeiro Santos
O problema: a financeirização da semiperiferia Portuguesa
O processo de financeirização da semiperiferia Portuguesa foi um processo de vulnerabilização socioeconómica. Indissociável do processo de integração europeu, que promoveu de forma acelerada a desregulamentação, privatização e liberalização dos mercados financeiros, a financeirização teve como principal resultado o crescimento, sem precedentes, da dívida, sobretudo privada. No quadro de uma união monetária em construção, o Estado viu-se ainda condicionado na sua ação, ao abdicar de instrumentos de política cambial e monetária, entregando-os a instâncias supranacionais, e aceitou a imposição de limitativas restrições orçamentais. Vincando a sua condição semiperiférica, a dependência financeira do país associou-se a uma desestruturação da economia e a um agravamento das desigualdades sociais.
A crise financeira global, a subsequente crise da dívida soberana, e o programa de ajustamento que se lhe seguiu, tornaram ainda mais evidente a relação entre dependência financeira e a crescente fragilidade do Estado. Até à crise o acesso facilitado ao crédito disfarçou, de certo modo, as debilidades estruturais do país e a perda de autonomia do Estado português. Contudo, estas fragilidades ficaram evidentes quando o Estado deixou de obter financiamento nos mercados e viu-se forçado a solicitá-lo à Troika composta pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional. A dependência financeira acentuou-se, traduzindo-se numa acrescida abdicação de soberania noutras áreas como as relações laborais. A recessão económica decorrente da austeridade agravou o fardo da dívida pública, a degradação dos serviços públicos, e intensificou a incorporação de lógicas e práticas financeiras no setor público, isto é, a financeirização do Estado.
Por financeirização do Estado entende-se o processo de transformação das funções chave do Estado favorável ao crescimento dos mercados financeiros, incluindo a incorporação da lógica das empresas financeiras na administração pública, central e local, e nas empresas públicas, tendo como consequência uma maior assunção de risco, coletivo e individual, e a crescente desproteção dos cidadãos. E esta financeirização do Estado tem ocorrido de variadas formas e através de diferentes políticas, incluindo as políticas macroeconómicas, como a política monetária e orçamental, e as políticas sociais, nas áreas da saúde, pensões ou habitação.
Desprovida de política orçamental à escala europeia, mas conivente com a desoneração do capital num contexto de livre circulação e proliferação de off-shores, que encolhem as receitas fiscais disponíveis, a União Europeia optou pela imposição de fortes restrições ao emprego, consumo e investimento públicos. E excluída a possibilidade de financiamento direto através dos bancos centrais nacionais ou do Banco Central Europeu, os Estados viram-se forçados a recorrer aos mercados para se financiarem. O investimento público caiu, os serviços públicos degradaram-se, e as desigualdades de rendimentos e de acesso a bens necessários à reprodução social aumentaram. Por outras palavras, à pressão para a redução do salário direto juntou-se a pressão sobre o salário indireto, o que significou que uma parte cada vez mais significativa do rendimento precário das famílias tem sido devotada a despesas essenciais, como a saúde ou a habitação, com a crescente mediação da finança, por via da contratação de seguros de saúde ou de empréstimos à habitação.
A financeirização do Estado traduz-se ainda em transformações qualitativas no modo de governação. A substituição do financiamento direto junto do seu banco central por financiamento dos mercados tem levado à crescente adoção de lógicas financeiras na atuação do Estado, que procura o exercício impossível de conciliar o bem comum com as condições dos financiadores. A incongruência entre interesses financeiros, que exigem rendibilidades mínimas, e a necessidade de garantir o acesso universal a bem essenciais, como a saúde e a habitação, demonstra o falhanço da financeirização do Estado em garantir a provisão de bens públicos e o bem-estar coletivo.
Em suma, a financeirização do Estado tem impactos nefastos na economia por via da ineficácia das políticas públicas subfinanciadas e dependentes dos interesses do capital, que, no caso nacional, tem privilegiado setores de baixo valor acrescentado e salários, como o turismo e o imobiliário. E tem impactos sociais nocivos porque as condições de reprodução da força de trabalho ficam mais debilitadas com a degradação das relações laborais e da provisão social.
A alternativa: desfinanceirizar o Estado, capacitar o país
Se o Estado se financeirizou ao abdicar das políticas monetária, orçamental e cambial, ficando dependente dos mercados para se financiar, gerir a sua dívida, e lidar com os desequilíbrios de uma integração monetária disfuncional, a desfinanceirização do Estado implica a recuperação destas políticas para a escala nacional. Só assim se conseguirá inverter as debilidades estruturais da economia, que exige investimento público em setores estratégicos e romper com pretensas lógicas de concorrência que só favorecem os países do centro europeu. Só assim se conseguirá reestabelecer os serviços públicos degradados com a austeridade, que favoreceram a provisão privada impedindo o acesso dos mais vulneráveis a bens essenciais.
O país necessita de recuperar as suas políticas macroeconómicas porque elas são indispensáveis para o investimento público em setores estratégicos, incluindo a garantia do nível necessário de soberania alimentar e energética. Elas são necessárias para a reestruturação da economia em torno de setores de elevado valor acrescentado e salários equivalentes, contribuindo para o bem-estar dos trabalhadores e suas famílias. Se dúvidas persistiam quanto ao perfil de especialização da economia portuguesa, a crise pandémica dissolveu-as. Apesar de o contágio da Covid-19 ter sido relativamente contido, Portugal será dos países mais atingidos pela crise sanitária dada a sua excessiva dependência do sector do turismo, um sector sujeito à oscilação da procura externa que, de forma inesperada e repentina, se extinguiu.
O país necessita ainda de inverter a lógica financeira que tem orientado a provisão dos bens públicos. A crise pandémica tornou claro que a proteção dos mais frágeis e da comunidade no seu conjunto obedece a outra lógica, a de acesso universal e igualitário a bens essenciais. E só o Estado é capaz de o fazer. Só o Estado é capaz de mobilizar os seus múltiplos recursos para a proteção dos cidadãos. Se foi assim na crise, deverá continuar a ser assim numa retoma que não surgirá espontaneamente. Garantir que os trabalhadores não fiquem à mercê da arbitrariedade de patrões. Garantir acesso universal a educação e saúde. Garantir que todos os cidadãos tenham acesso a uma habitação condigna e a telecomunicações, dos quais depende o usufruto de condições mínimas de conforto bem como o acesso a outros bens e serviços essenciais. As medidas de emergência identificam bem as áreas prioritárias para uma vida decente.
Estas medidas sinalizam, sem margem para dúvidas, que a sobrevivência individual e coletiva depende da garantia de condições mínimas de reprodução social. O cancelamento dos despejos e as moratórias aos empréstimos à habitação mostram que uma sociedade decente tem de garantir habitação condigna a todos os cidadãos, que não pode estar dependente do acesso ao crédito ou de rendimentos incompatíveis com os que a economia nacional garante aos seus cidadãos. A telescola mostra que o acesso à educação não pode estar dependente do poder económico das famílias ou da sua capacidade de se substituir à escola pública. O Serviço Nacional de Saúde, que não fecha portas a ninguém, nem a qualquer doença, mostra que o acesso a cuidados de saúde não pode estar dependente da arbitrariedade dos hospitais privados ou da cobertura dos seguros de saúde. Em suma, o bem-estar coletivo requer provisão pública sem intermediação financeira.
Daqui não se conclui que o setor financeiro é irrelevante. Ele é relevante e necessário, mas tem de ser reorientado para o bem comum. Deve financiar as actividades que contribuam para o relançamento da economia e a geração de rendimentos que permitam uma vida digna, ao invés da especulação imobiliária e financeira e da precarização da reprodução social. Para tal, são necessários bancos públicos, especializados funcionalmente, orientados por missões claras, e um setor não mercantil financeiro que responda diretamente às necessidades dos cidadãos. Finalmente, é imprescindível reinstituir controlos de capitais, por forma a desincentivar fugas desestabilizadoras e arbitragens fiscais perversas, atenuando também a importação de instabilidade financeira internacional.
Uma economia que efetivamente proteja e cuide dos seus cidadãos só pode ser uma economia desfinanceirizada. Uma economia em que o Estado é soberano e cuja ação é orientada para a comunidade, sem ser coartada pela apetência especulativa dos mercados financeiros.