Património é um termo transversal e polissémico, convertido, em finais do século XX, em lugar-comum dos discursos científicos, técnicos, políticos e jornalísticos. No plano ideológico, a trajetória do termo revela significados duais e ambivalentes. De uma conceção inicial ligada às ideologias conservadoras, apostadas em fabricar hegemonicamente os símbolos de uma nação, o termo património vai ganhando a simpatia gradual dos ideais progressistas, à medida que se liberta da esfera estatal centralizada e invade as agendas comunitárias e locais, servindo propósitos de afirmação de identidades e interesses particulares.
A principal caraterística do património assenta na ideia de intergeracionalidade, a que se associa o desiderato de transmissão. Este ideal estende-se hoje das políticas supraestatais – como as que são conduzidas por agências como a UNESCO, entre outras –, que pretendem configurar uma identidade humanitária global, às dinâmicas familiares e individuais, cuja ambição é legar bens económicos e simbólicos no contexto de interações sociais primárias.
Quer numa, quer noutra dimensão, o património tem sido encarado com perspetivas otimistas, social e economicamente valorizadas, o que lhe confere uma legitimidade que é atestada pelo consenso que a sua verbalização parece gerar. Todavia, num momento de agravamento de crises várias, o termo património suscita crescentemente a preocupação de que as heranças que estão a ser deixadas às gerações futuras possam ser fardos insuportáveis. O legado de uma sociedade em crise traduz-se, não apenas na transmissão de bens pelos pais e pelos antepassados, mas também, e cada vez mais, numa fatura ambiental pesada para a humanidade, numa dívida pública tornada intolerável pelo peso de juros que esmagam um número crescente de países e pelas precárias condições das famílias que se veem crescentemente incapacitadas de deixar às gerações futuras uma situação melhor do que aquela que encontraram. Metalinguagem da ligação entre o passado e o futuro, o património parece transmitir, numa sociedade em crise, ao contrário dos seus desígnios, uma inusitada descrença no futuro.
Paulo Peixoto