A literatura, como toda a arte, pergunta com rigor pela vida, pela sociedade e pela cultura. Mas não lhes serve de alternativa, muito menos em tempo de crise. O neo-realismo português, mais inspirador do que interventivo, é um excelente exemplo disso mesmo.
No início do século XX, os modernistas portugueses distinguiam a poesia da literatura, uma distinção que nada tinha a ver com a que distingue
o verso da prosa. Poesia era a arte suprema da escrita criativa, a vanguarda artística, a luz da desocultação do novo, o desassossego da existência. Literatura, pelo contrário, era a reescrita do existente a uma luz alheia, dela cativa como uma borboleta, por isso reconfortante, mesmo quando porventura problematizante. Distinguiam-se, assim, os poetas dos lepidópteros.
Nos últimos anos, em Portugal, particularmente depois da crise que levou à intervenção da troika, assiste-se ao recrudescimento de uma literatura humorística, que acaba por ser reconfortante. Os autores de cartoons e do Portugalex, por exemplo, partilham diversão à custa dos governantes, porém evitando sabiamente a sátira mais feroz. E o povo ri-se e desopila. Os políticos da Roma antiga inventaram o estratagema de alimentar o povo e mimá-lo com jogos circenses para lhe suster a revolta: “pão e circo”. Enquanto na crise os portugueses se vão também divertindo com o circo, a poesia (no sentido que lhe deram os modernistas) continuará a desassossegar as almas.
Maria Irene Ramalho
Nota: A pedido da autora, esta entrada mantém a grafia anterior ao novo acordo ortográfico.