Antigo “berço da democracia” e espaço matricial da identidade europeia como lugar ao mesmo tempo integrador e excludente de povos, crenças e culturas, a Grécia é parte de um passado amplamente partilhado. Nas atuais circunstâncias, é também um indicador de futuro para os países e as populações que mais carregam o peso da crise económica e política. O mundo da finança quis fazer dela um exemplo e, na tentativa de punir o Estado da zona euro que lhe parecia mais frágil, empurrou-a para uma situação dramática, mas transformou-a também no território onde começa a definir-se a alternativa. A Grécia encontra-se pois no centro da tormenta, mas também na vanguarda do combate contra a ditadura financista que está a destruir o Estado social, a ameaçar a sobrevivência de milhões de pessoas, a propagar o desespero, o medo e a guerra de todos contra todos. Nas ruas e praças, como nos espaços de informação, organização e debate, ao lado da cólera emocional desencadeada na tentativa de destruir os símbolos imediatos da opressão, desenvolve-se uma ira lúcida: a dos que resistem a deixar-se espoliar em benefício da lógica implacável dos especuladores.
Perante o descrédito dos partidos institucionais que têm dominado a democracia parlamentar instalada no país após a queda em 1975 do “regime dos coronéis”, associada a um clientelismo endémico e a uma corrupção num grau extremo, sucedem-se as assembleias de democracia direta, as formas de desobediência civil, as primeiras experiências de autogestão, preludiando um sistema possível que, em nome do humano, rejeita a tirania dos mercados.
Ao mesmo tempo, a situação promove um cenário mais vasto, capaz de enquadrar novas possibilidades: o verdadeiro desafio não é já a preservação da identidade de um Estado mas, sim, a da Europa. Se todos os olhares se voltam para Atenas, para escapar à crise é necessário escolher a Europa que se quer reerguer. Nas ruas helénicas, como nas dos Estados que serão o cenário imediato da perda de soberania, tem lugar um combate pela construção de uma alternativa justa e democrática. A mais recente tragédia grega não passa pela derrocada da democracia como conceito, mas pela épica da sua refundação.
Rui Bebiano