A constituição enquanto documento fundamental da comunidade política relaciona-se estreitamente com os pressupostos de afirmação do Estado moderno: a nação soberana, o indivíduo cidadão e a separação de poderes. Verificam-se três desdobramentos. Primeiro, o de constituição da liberdade política moderna. Se a promessa de fundação constitucional moderna foi revolucionária, situando a soberania popular como poder constituinte originário, a credibilidade que convocou para a forma de governo democrática, na prática, afunilou o sentido e o alcance da própria democracia no âmbito de uma organização burguesa, liberal, oligárquica e censitária. O segundo aspeto é racional-legal, de estabilização da ordem política e racionalização da ordem jurídica em que a constituição valida as normas e os valores políticos, regulando os conflitos fundamentais de distribuição dos direitos e dos recursos de poder. Projeta-se assim um terceiro aspeto, a constituição como pacto social, que tem resistido ao enfraquecimento da soberania e à ineficácia da cidada-nia. Perante uma turbulência de escalas e de valores, as comunidades políticas nacionais têm sofrido o impacto cruzado quer da influência transnacional de poderosos atores políticos e económicos, quer da sobrecarga simbólica dos valores constitucionais. Testemunha-se o questionamento da legitimidade e da capacidade de integração das sociabilidades pela constituição, evidenciando-se que muitos dos denominadores comuns que orientaram o processo constituinte dos Estados modernos pronunciaram, sob a afirmação da igualdade, a exclusão e a invisibilidade da diferença dos povos constituídos.
Atualmente, assiste-se esperançosamente a um constitucionalismo vindo de baixo, influenciado pelos movimentos identitários de democratização e de libertação colonial e pós-colonial no Sul global (Brasil, África do Sul, Bolívia, Equador). A luta pela liberdade dos povos tem caminhado a par da luta pela libertação das armadilhas das constituições modernas.
Élida Lauris dos Santos